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Opinião: Assim como na sociedade, a democracia é a salvação do futebol, não a SAF

Nasce mais uma cópia “gringuismo” tupiniquim. Se já não bastasse ter importado da Europa as terminologias sobre futebol que nada falam sobre futebol, os esquemas táticos retranqueiros e a arenização gentrificante dos estádios, o futebol mais vezes campeão do mundo agora quer trazer a Sociedade Anônima do Futebol, a SAF. Com a aprovação da Lei do clube-empresa em 2021, incomum não se tornou encontrar um cronista esportivo avaliando o modelo como algo imprescindível para o encontro dos clubes brasileiros com a boa gestão, os cofres abarrotados de milhões e o pagamento de dívidas. Mesmo assim, fica o indagamento: a tão aclamada SAF é tudo isso mesmo? 

Abaixo a SAF: O futuro do futebol vem da democracia

Para começar, é bom ressaltar que a maioria dos times brasileiros hoje são associações civis que têm seus presidentes escolhidos pelos sócios, gerindo, assim, as entidades esportivas por dois ou três anos, a depender do que rege o estatuto de cada clube. Na maioria das vezes, os mandatários são inspecionados por conselheiros, que se dividem em eleitos, contribuintes, beneméritos, vitalícios e constituem os conselhos deliberativos, órgão responsável por aprovar contas, reformular estatuto e até abrir processos de impeachment, se necessário e válido. 

Nada impede, porém, tais associações de receberem investimentos de terceiros. Alguns clubes, por exemplo, recebem patrocínios com injeções financeiras bem generosas, como faz o Palmeiras com a Crefisa atualmente. Já outros recebem grandes empréstimos de mecenas, sendo o campeão de 2021, Atlético Mineiro, um exemplo. O clube mineiro tem uma relação forte com o empresário Rubens Menin, grande credor e conselheiro influente na política do galo. Uma parte dessas parcerias rendem frutos para os dois lados, já outras apenas para um, o que não acaba nada bem.  

Palmeiras é patrocinado pela Crefisa. | Foto: Reprodução.
Palmeiras é patrocinado pela Crefisa. | Foto: Reprodução.

Vai se enganar, porém, quem pensa que a SAF é novidade no Brasil. O modelo de sociedade anônima já foi implementado no Vitória no começo dos anos 2000 . A empreitada não acabou bem e a equipe baiana foi rebaixada pela primeira vez para a Série C do Brasileirão. O leão voltou a ser associação em 2008, levando como brinde da experiência uma dívida de 10 milhões de reais com seu antigo gestor, o banco argentino Exxel Group. 

Você pode se perguntar, então, para que raios serviu a lei aprovada ano passado se os clubes sempre puderam se tornar empresas. Eu respondo: para nada. A lei é um simples incentivo do Governo para que os clubes quitem seus enormes passivos. Entretanto, antes de aprovada, tal lei nem foi discutida de forma ampla com clubes e demais participantes do futebol nacional, e mesmo assim foi abraçada de forma fácil por jornalistas, torcedores e profissionais do ramo.

É, de fato, muito fácil simpatizar com a SAF. Só assim um torcedor de um time afundado em dívidas e picaretagens de cartolas nada éticos pode sonhar com um investimento de um bilionário árabe. Mas, é bom acordar esse torcedor de tal sonho e o trazer para realidade. Mesmo que não lhe incomode um ditador sanguinário de um emirado em seu clube, é bom destacar que um clube brasileiro torna-se totalmente desinteressante para tais perfis de investidores. Bilionários como Nasser Al-Khelaïfi, CEO do PSG e participante do governo tirano do Catar, buscam comprar clubes e contratar jogadores famosos para fazer auto-publicidade e firmar acordos comerciais. Diante disso, clubes do Brasil e de qualquer país não europeu são irrelevantes para tal feito. Se Nasser comprasse o Flamengo, clube mais popular de nosso país, não seria notado por isso e muito menos impactaria o futebol mundial.

Além disso, não será por meio da SAF que teremos o fim dos cartolas. Botafogo e Cruzeiro, comprados pelo americano John Textor e pelo ex-jogador e empresário Ronaldo, respectivamente, ainda têm 10% de suas dívidas como associação. Nesses casos, os investidores serão responsáveis por 90% do futebol, enquanto a associação cuida do percentual e restante, do patrimônio do clube e de demais modalidades esportivas. Ainda existirão, portanto, eleições para decidir quem presidirá o que sobra das associações. 

A Espanha serve como exemplo de que cartolas estarão sempre no meio do processo. Os clubes espanhóis foram obrigados a se tornarem sociedades anônimas nos anos 90, com exceção de Real Madrid, Barcelona e Athletic Bilbao e Osasuna. A expectativa pela atração de grandes investidores foi por água abaixo, e a maioria dos clubes foram comprados por empresas ligadas às famílias de seus ex-mandatários, o que os deixou de vez na mão dos gestores irresponsáveis. Então, não se admire você se seu clube ao virar SAF for comprado por aquela família tradicional, já ligada ao seu time, que não tem lá muita ética e responsabilidade administrativa. 

Ademais, investidores não são garantia de boa gestão ou de fortes inserções financeiras. O Newcastle, comprado recentemente pelo Fundo de Investimento Soberano Saudita, pouco recurso recebia de seu antigo sócio majoritário. O também inglês Coventry City deu adeus à primeira divisão da Inglaterra e foi parar na quarta, graças à má administração de seus gestores. Logo, poderemos encontrar ainda nos clubes que virarem SAF no Brasil gestões ruins ou o desinteresse em investimentos que busquem bons resultados esportivos. É bom lembrar que credores buscam o lucro, e é bem conveniente e mais rápido investir apenas em jogadores da base para uma venda futura do que buscar uma valorização maior da marca por meio de conquistas. O questionamento que fica é qual a solução para os inúmeros problemas dos nossos clubes, e eu os respondo destacando nosso maior problema: nossos clubes são fechados.  

Compare o país mais fechado do mundo a um clube brasileiro e talvez o país perca de lavada no quesito sigilo. No Brasil, pouco se sabe sobre quanto cada clube arrecada, movimenta e deve. Da mesma forma que você deve desconhecer quem ocupou alguns cargos em seu clube do coração. As próprias eleições das associações são restritas, o Flamengo, clube que tem a maior torcida do país, teve em sua eleição mais recente apenas 2.011 sócios votantes. Para votar em uma eleição do rubro-negro carioca, é preciso ser sócio do clube, onde o plano mais barato é de R$283, cerca de 23% de um salário mínimo. Cabe ressaltar que ser sócio do clube Flamengo é diferente de ser sócio-torcedor, categoria com planos mais em conta, que não tem participação na vida política do clube. 

Perante esse tipo de problema, não se torna raro conhecermos alguns clubes por quase serem propriedades de alguns cartolas. Eurico Miranda, quando citado, é facilmente associado ao Vasco, e mesmo tendo falecido há três anos, tem seu filho, Eurico Brandão, ainda com grande influência nos bastidores do cruz-maltino. Na mesma levada, o Palmeiras foi conduzido por Mustafá Contursi durante 12 anos, e dentre algumas conquistas e fracassos, o verdão acabou desenvolvendo um mar de dívidas. 

As velhas figuras do futebol. | Foto: Reprodução.
As velhas figuras do futebol. | Foto: Marcelo Sadio.

O resumo da ópera é que os clubes do Brasil são geridos por oligarquias, que escolhem quem manda, desmanda, quando se deve prestar contas ou não. Mário Petraglia, presidente do Athletico Paranaense e bem elogiado como dirigente, está envolvido na política do Furacão desde os anos 90, e apesar de elevar o patamar de seu clube, pratica alguns truques para continuar como força máxima do time paranaense. Ao deixar a presidência do rubro-negro em 2015, assumiu a presidência do conselho deliberativo e ficou, assim, responsável por julgar suas próprias contas.

SAF.
Por muito tempo a SAF vem controlando o futebol brasileiro. | Foto: Reprodução.

Fica, diante do exposto, o caminho para o fim de tais maracutaias que levam os clubes à irresponsabilidade financeira e ao fracasso: a democracia. É preciso democratizar nossos clubes, fazendo o torcedor mais participativo, e exemplos em volta não faltam. O Internacional elegeu Alessandro Barcelos como seu presidente em 2020, contando com 29.041 sócios votantes. Mais ao sul, na Argentina, o Boca Juniors elegeu seu mandatário com 38.363 sócio-torcedores participando do pleito.

Bahia e Fortaleza representam como a democratização pode trazer o profissionalismo e a transparência. O tricolor baiano, embora rebaixado para a Série B na última temporada, teve uma redução brusca de seu passivo com a justiça após reformar o seu estatuto e tornar o clube mais acessível à torcida, ao mesmo tempo que o Fortaleza fez o mesmo e está muito próximo de zerar suas dívidas trabalhistas, além de ter conseguido, pela primeira vez em sua história, classificar-se para Libertadores. 

Por fim, podemos notar que a SAF pode sim ser um caminho para o futebol brasileiro, mas passa longe de ser um fator que surta um grande efeito, principalmente quando executado às pressas e de forma não transparente. A democratização dos clubes é o caminho e a ferramenta para dar o início a uma virada de chave. Soluções fáceis não existem, e com o passado recente, o brasileiro já deveria saber muito bem disso.

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Por George Lucas – Fala! UFPB

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