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Opinião – Aborto: moralmente errado ou questão de saúde pública?

No dia 16 de agosto de 2020, cerca de duzentos católicos e evangélicos se aglomeraram, em plena pandemia, em frente a um hospital onde uma menina grávida, de dez anos, faria um aborto. Abusada sexualmente por um parente desde os seis, foi necessário viajar para outro estado e enfrentar os xingamentos de uma multidão de religiosos para passar pela cirurgia.

Atualmente, embora já tenha havido debates ministeriais para criminalizá-los também, o aborto é permitido somente em três casos específicos: estupro, má formação do feto (anencefalia) ou quando coloca em risco a saúde da mulher. 

Muito do que se debate acerca da legalização dessa operação – e todas as opiniões subjacentes – carrega aspectos parciais e maniqueístas, visto menos como uma questão sanitária e escolha pessoal e mais como um processo avaliado a partir do caráter de um indivíduo. Uma vez que tudo é uma construção social, quais são essas ações que demonizam tão fortemente a interrupção de uma gravidez? 

aborto
No Brasil, o aborto só é permitido em casos de estupro, risco para a mulher ou feto com anencefalia. | Foto: Reprodução.

Ações e grupos que demonizam o aborto

1. Religião 

 O cristianismo e o espiritismo são os dois principais conglomerados religiosos que se fundamentam, em seus discursos e dogmas, contrários ao aborto, contudo existem diversas outras práticas espirituais menores condenativas desse processo.

Embora o Estado seja, na teoria, laico, hoje a bancada religiosa se faz presente no Congresso compondo cerca de 20% dele. São 105 deputados e 15 senadores que utilizam de suas crenças para alçar cargos cada vez mais altos e de maior influência, mesclando política com religião e se opondo fortemente a temas de esfera pública, incluindo o aborto.

Dessa forma, as doutrinas religiosas podem, atualmente, ser consideradas como as principais forças motrizes que rechaçam com tanta força, política e socialmente falando o interrupção de uma gravidez, até aquelas ocorridas por razão de abusos sexuais. 

A moral construída em torno da vida existente a partir do momento da concepção que fez centenas de pessoas, ao mesmo tempo, rezarem e xingarem uma menina estuprada e o médico que iria proceder com a intervenção cirúrgica no exemplo dado acima. 

2. “Tenha o bebê e mande-o para adoção”

Esse é outro ponto que se apresenta como alternativa contrária – e “mais humana” – ao aborto, uma vez que a mulher não precisará cuidar da criança em questão e esta, ainda assim, poderá viver. 

O argumento se baseia no conceito daqueles autointitulados “pró-vida“. O termo nunca explicou todas as possíveis ramificações, mas seu conveniente desconhecimento do sistema adotivo brasileiro poderia trazer uma renomeação para “pró-nascimento”, uma vez que a adoção no Brasil é lenta e burocrática, além do enorme contingente de exigências não passíveis de serem atendidas pelos adotantes. O processo todo poucas vezes é concluído. 

No presente momento, são quase trinta e quatro mil crianças abrigadas em casas de acolhimento ou instituições públicas e cerca de cinco mil disponíveis para serem adotadas. Embora o número da quantidade de pais desejosos para reconhecer legalmente algumas dessas seja grande – trinta e sei mil -, a verdade é que 80% das crianças recebidas pelo Estado possuem idade acima dos dez anos, enquanto somente 2,7% dos pretendentes aceitam adotar acima dessa faixa etária – dados do Senado Legislativo. 

Em suma, estar dentro de um sistema adotivo é ser criado por e dentro dele. Não se sabe o futuro desses jovens, assegurados pela incerteza de um governo que constantemente corta (ou, como é oficialmente nomeado, “enxuga”)  verbas de assistência social, imprescindível para todo o suporte institucional. 

3. “Em caso de estupro, é ok”

Um pensamento largamente reproduzido e que fere indiretamente os direitos reprodutivos de todas as mulheres. Partindo do ponto no qual se tem dois fetos em diferentes situações: um fruto de estupro; outro, de uma relação consensual em que, de forma acidental, ocorre a concepção. Ambos são bebês que se desenvolverão, com apenas uma diferença entre eles: o consentimento dentro do sexo. 

No primeiro caso, uma mulher é forçada a passar pela violação. No segundo, ela esteve, de modo consciente e favorável, dentro da relação sexual. Portanto, pode-se perceber que a questão não é sobre embriões sendo abortados ou não, e sim sobre a mulher estar envolvida e gostar desse processo. 

Assim, se algo ocorrer, ela deve aceitar a “punição” de carregar uma vida que ela não planejou, já que era um risco a ser encarado, uma vez que ela aceitou ter uma vida sexual ativa. Condição essa que os homens não se sentem obrigados a, também, arcar, posto que cerca de 5,5 milhões de crianças não possuem o registro do pai na certidão de nascimento (dado captado em 2013, pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ). 

A escolha, sendo assim, não está nas mãos de nenhuma delas. E isso precisa mudar. É claro que essas foram somente algumas das maiores crenças difundidas na sociedade para ferir um pouco mais o leque de opções que deveria ser apresentado para as mulheres ao lidar com a magnitude de carregar e cuidar de uma criança por anos. Muitas outras existem e continuam circulando no imaginário coletivo como argumentos pertinentes para fazer da maternidade uma obrigação e dever natural feminino. 

A verdade é: a criminalização do aborto é seletiva. No Brasil, só não abortam as mulheres que são pobres e não possuem condições seguras para passar pelo procedimento. A grande maioria delas é negra e favelada – tornando real o conceito de cidadãs de segunda classe.  

O DataSUS apresentou dados alarmantes durante o ano de 2020, comprovando a continuação dos abortos ilegais. Entre janeiro e junho, o SUS fez somente 1024 abortos legais e cerca de 80948 curetagens e aspirações – procedimentos mais frequentes quando a interrupção é provocada. 

Em suma, os brasileiros já pagam pelas consequências de abortamentos ilegais das mulheres. Elas continuam abortando, com ou sem o aval governamental, e o preço disso já é pago. Assim, sendo uma questão de saúde pública e não de crenças pessoais, que seja feito de forma segura e garantindo o direito de todas as mulheres poderem tomar decisões sobre seus corpos. 

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Por Maria Edhuarda Gonzaga Castro – Fala! Cásper

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