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‘Gaslighting’ e o mito da mulher louca: Conheça o abuso psicológico

Década de 40. Uma bela e ingênua dama conhece um experiente rapaz. Em pouco tempo, estão incondicionalmente apaixonados. Entretanto, posteriormente, a relação do jovem casal passa a ser pautada em manipulação, transformando-se em um relacionamento abusivo. 

A narrativa trata-se da sinopse do longa-metragem Gaslight (À Meia-Luz, em tradução livre). Hoje, o título da obra dá origem a uma subdivisão da violência psicológica. Pense em quantas Paula’s Alquist – protagonista do filme e vítima do abuso representado – você conhece.

E de onde surge esse nome? Ao decorrer do filme, para fazer com que a personagem acredite estar louca, o marido, estrategicamente, programa as lâmpadas de gás da casa para ligarem e desligarem de forma alternada. Assim, sempre que Paula as vê piscando, ele afirma que a mesma está tendo visões, repetidamente, até que a própria questione sua sanidade. Nesse contexto de manipulação, esse constante contato com o abuso altera a percepção da vítima sobre si mesma.

abuso psicológico
O Gaslighting é uma forma de abuso psicológico. | Foto: Reprodução.

Gaslighting, para além do cinema

Assim, o Gaslighting ganha força tornando-se uma das multifaces do machismo.

Na prática, ele se dá de maneira sutil e repetitiva, mas ainda extremamente perigosa. São poucas as vezes que a vítima tem consciência de estar presa em situações desse tipo, uma vez que não existe um agressão explícita, pelo menos não como entendemos esse termo. Fomentando toda uma geração de mulheres exaustas mentalmente, com a autoestima desgastada e com diversas sequelas sociais. Esse abuso tem o fim em anular a perspectiva feminina. 

No que tange esse panorama, as experiências são distorcidas, omitidas ou inventadas para favorecer o abusador e fazer com que a vítima duvide de sua memória, sentimentos, instintos e sanidade. Pode-se utilizar técnicas que vão desde a negação do discurso à banalização das suas reações.

Vale ressaltar que esse tipo de manipulação emocional alimenta toda uma pandemia social. Se você é uma mulher, provavelmente já ouviu sentenças como: “Você está exagerando”, “Você está louca”, “Você está imaginando coisas”, “Você só pode estar de TPM” ou “Você é muito sensível”, estou certa?

Essas frases corriqueiras são maneiras de invalidar o posicionamento feminino, transformando-as em desequilibradas ou insuficientes, já que, assim, essas expressões dão força a toda uma estrutura que permite ao abusador ocasionar dúvidas e confusão na vítima, à medida em que deturpa as informações e diminui sua voz, a ponto dela se sentir culpada pelas suas atitudes, e começar a observar-se como insana. O nosso vocabulário usual não-reflexivo é responsável por uma enorme quantidade de mulheres que buscam fechar-se em si mesmas.

Essa condição possui outro agravante, por tratar-se de um abuso naturalizado na sociedade, quando a mulher busca reagir a esses ataques, ela rapidamente é reprimida, possibilitando sentimentos de insegurança e desconforto.

Ser chamada de louca – e consequentemente sentir-se assim – é uma estratégia muito eficiente do patriarcado a fim de desautorizar o discurso feminino. As mulheres são mais vulneráveis – essa colocação não significa que elas sejam frágeis – no que tange seu papel no tecido social, porque elas foram construídas em um contexto que as desvaloriza.

Raramente observamos homens sendo rotulados de “histéricos” e “dramáticos”, por exemplo. Esses adjetivos que tentam abalar a sanidade mental alheia frequentemente são destinados às mulheres, muitas nem percebem que seus argumentos são rebatidos sempre com a justificativa de que ela “não bate bem da cabeça’’.

Essas atitudes provocam severas consequências ao bem-estar biopsicossocial da vítima, como a dificuldade de manter relacionamentos interpessoais, insatisfação em relação a si mesma e desenvolvimento de doenças mentais, a exemplo de depressão e ansiedade. Esses quadros podem se agravar à medida que a violência é recorrente e demora para ser identificada.

Tendo como base o relato de 4 mulheres, pode-se inferir a presença do Gaslighting em diversos tipos de relacionamento em vidas completamente diferentes, mas que se correlacionam nesse aspecto. 

Gaslighting em relacionamentos

Camila é uma mulher de 28 anos que, aos 16, vivenciou a violência psicológica velada por parte de seu namorado. Ela conta:

Ouvia dele que era uma garota maravilhosa, que ele gostava de mim, mas esteticamente, não. Desejava que eu emagrecesse, logo depois que terminamos, eu acreditei que meu corpo estava errado e, por minha causa, tinha tomado um fora. Tentei emagrecer. Comia e forçava o vômito. Quando comecei a emagrecer, ele se aproximou novamente. Através disso, desenvolvi várias neuras comigo mesma e meu biotipo. Me tornei insegura. Me achava feia. Odiei meu corpo por anos. Até me conhecer novamente.

Maria* (nome fictício para preservação da privacidade) tem 17 anos e manteve um relacionamento com o seu parceiro por 8 meses, narra a condição de abuso como sendo gradual, e nunca muito explícita.

Eu me sentia mal quando não queria fazer nada sexual com ele, porque ele me fazia pensar que isso era essencial e que, caso não fizesse, eu não o amava. Quando houve o primeiro boato da traição, eu fui questionar sobre isso, ele me xingou e disse que eu era louca. Depois disso, nunca mais questionei. Mas, nessa altura, eu já tinha sofrido demais, chorava demais, perdi 4kg, me automutilava por pensar que a culpa de tudo aquilo era minha. Durante o relacionamento, eu nunca percebi que a fonte da minha tristeza era ele e toda a manipulação dele. Tampouco, percebi logo depois.

Joana* manteve um relacionamento de amizade do ensino fundamental ao começo do ensino médio com Humberto*, até começarem a se desentender. Ela associa a longevidade do abuso com a dependência emocional que nutria pelo mesmo.

Ele virava todas as pequenas discussões para mim para, no final, eu pedir desculpa. Na época, eu achava essas coisas normais, comecei a perceber que não é só agora que passaram anos. Tem um caso que eu lembro, fiz um texto no Facebook relatando um assédio que tinha sofrido e coloquei, no texto, que tinha sofrido um assédio e o meu melhor amigo tinha rido. Ele veio por mensagem. Me fez pedir desculpa e apagar o texto. Implorava para ele não parar de falar comigo.

Bárbara* sofreu maus-tratos psicológicos durante quase 2 anos. “O primeiro objetivo dele era diminuir minha autoestima e acabar com a minha autoconfiança; no fim, conseguiu. Ele me manipulou ao ponto de me fazer pensar que eu realmente era a culpada por aquilo não ir para frente”.

Ela conta sentir as consequências do Gaslighting até hoje, mesmo após o distanciamento com o mesmo. “Criei um bloqueio para qualquer relacionamento; se alguém faz qualquer demonstração de afeto, eu fujo por medo de acontecer tudo de novo. Medo de me entregar de novo e tirarem proveito disso”.

Esses são exemplos clássicos de Gaslighting, quando seu parceiro comete um erro. Você argumenta e discute. Naquela situação, você não sabe como, de repente, você está se sentindo a causadora do problema. 

Dessa forma, a mulher perde sua credibilidade e seu poder simbólico é colocado em vacilação. Visto que é cada vez mais frequente a reprovação da violência física no corpo social, o abusador apela para a manipulação emocional, o vitimismo, ou simplesmente, o Gaslighting. Seja essa atitude consciente ou não, produz em cadeia uma série de consequências nocivas, uma vez que essa prática costuma ser particularmente danosa para elas.

É importante que se debata essa questão para que mulheres melhor compreendam essa técnica simples e eficaz que visa gerar o sentimento de culpa em situações que ela não é culpada. Ou para se entender que por vezes a “submissão” é decorrente de uma situação em que não se sabe onde está, e nem como se pode sair. 

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Por Vitória Prates – Fala! Cásper

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