É 2022 e a defesa de uma nova ditadura militar, atos inconstitucionais ou a relativização do regime violento que durou até 1985 ainda são frequentes em manifestações de rua e em pronunciamentos do presidente Jair Bolsonaro.
Em junho de 2020, uma pesquisa do DataFolha indicou que 22% dos entrevistados aceitam a volta da ditadura ou não se importam com o fim da democracia. Segundo o instituto, foi a porcentagem mais alta alcançada desde que a pergunta foi feita em 1989. Mas por que muitos brasileiros ainda enxergam a ditadura militar como uma salvação? Continue lendo este artigo!
Ministro da Defesa falou sobre a Ditadura Militar
No dia 31 de março do ano passado – data que marca os 57 anos do episódio conhecido como ‘’Golpe Militar de 64” –, chamou a atenção o primeiro comunicado oficial do novo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, precisamente sobre aquele evento.
Em seu texto, o ministro diz que, naquele dia, “as Forças Armadas acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o país’’, e que a Lei da Anistia, de 1979, ‘’consolidou um amplo pacto de pacificação a partir das convergências da própria democracia’’. Ao final, Braga Netto afirma que ‘’as Forças Armadas acompanharam as mudanças, conscientes de sua missão constitucional de defender a pátria e garantir os poderes constitucionais’’.
A partir dessa declaração polêmica, é possível afirmar que o alto escalão militar adota uma posição contrária à ideia de um golpe. É expressivo e sugestivo o fato dessa perspectiva, ainda no ano de 2021, ser discutida na democracia brasileira. Logo, é possível concluir que a democracia é uma ‘’ferida aberta’’ na história do país.
Ivan Seixas, ex militante guerrilheiro, preso aos 16 anos pelo regime militar, conta: “Tudo isso que vocês estão vendo hoje – esse festival de horrores, essa coisa absurda – aconteceu em 64, pediram intervenção’’. Seixas ainda continua: ‘‘costumo brincar que a classe média que foi bater na porta dos quartéis para pedir o golpe, alguns meses ou anos depois, batiam nas portas dos mesmos quartéis para perguntar se seus filhos estavam sendo torturados lá dentro”.
A Crise da Democracia e o salvacionismo militar
‘’Estamos vivendo uma época de crise de valores políticos fundantes de uma certa civilização’’, afirma Marcos Napolitano, professor de história da Universidade de São Paulo (USP) e autor de 1964: História do Regime Militar.
Para ele, na América Latina, onde a pobreza e a as desigualdades sociais são imensas, alguns fatores agravam ainda mais a sensação de que a democracia não dará conta dos desafios políticos e sociais: a insegurança geral da população, a vulnerabilidade dos grupos mais pobres, os medos sociais das classes médias, a insensibilidade das elites para a questão da desigualdade, o oportunismo e a falta de coerência de grande parte da elite econômica.‘
’A opinião da extrema direita conseguiu disseminar a ideia de que a democracia é sempre corrupta, e a ordem autoritária não’’, diz Napolitano. ‘’Isso é, obviamente, uma bobagem, mas tem grande apelo em uma população que confunde os defeitos dos políticos que elege com as insuficiências da democracia como valor político e regra institucional.’’
Logo, em um momento crítico de demonização da política – aliado à cultura historiográfica frágil e à ideia de golpe como solução –, a crença na competência dos aparatos democráticos é colocada em xeque.
A pergunta que não quer calar é: quem vai nos salvar? ’’Essa é a razão pela qual há um movimento de retorno à antiga crença no salvacionismo militar, com seus intermediadores como símbolos messiânicos’’, aponta Gunter Da Costa Silva, professor de história graduado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
‘’Com a crise política e o desgaste da esquerda entre 2013 e 2016, a nostalgia do regime, antes restrita a grupos fanáticos de extrema direita, ganhou mais espaço no debate público’’, conta Marcos Napolitano.
Todos esses fatores convergem para o salvacionismo militar. Segundo esse credo, comum entre setores militares e civis e baseado no nacionalismo exacerbado, culto a um líder e apoio da Igreja, somente as Forças Armadas estariam limpas de corrupção. Elas seriam orientadas pelo patriotismo altruísta e teriam as competências necessárias para guiar o país ao progresso, sem as burocracias da democracia.
Cultura democrática e educação
‘’A situação atual é fruto de uma educação malfeita e da falta de entendimento teórico sobre o que é democracia e a história do país’’, diz Da Costa Silva.’’Não houve a criação, no Brasil, de uma cultura democrática entre a população.”
‘’A democracia é ensinada em cima de um valor da maioria. A democracia não é apenas a maioria, mas o equilíbrio das forças entre a maioria e a minoria, e a oportunidade para a minoria ascender. Não existe democracia sem o equilíbrio de forças sociais. Pessoas que defendem a ditadura nunca aprenderam o que é democracia’’, explica
Segundo ele, uma parcela das pessoas foi às ruas no ‘’Diretas Já’’ devido à péssima situação financeira e inflacionária que o país se encontrava — ou seja, por razões econômicas, e não ideais políticos, como o prestígio à república e à democracia. ‘’Sempre a visão é alinhada ao econômico. Se a direita me deu dinheiro, a direita é boa. Se a esquerda me deu dinheiro, a esquerda é boa. Não se analisa a questão política. Acima da direita e esquerda existe a democracia, e as pessoas ignoram isso, só se importando com o bolso.’’
O professor unespiano ainda fala sobre a prosperidade econômica no auge do regime para o funcionalismo público, o que explicaria o flerte dos herdeiros desses funcionários com a ditadura militar.
‘’Quando começou a crise econômica de 80 e a ditadura caiu, os cofres públicos estavam estourados, portanto, reformas tiveram que ser iniciadas e os salários dos trabalhadores do serviço público, que eram muito altos, foram duramente cortados. Logo, infelizmente, uma vez que só a perspectiva financeira importa, os netos e filhos desses ex-funcionários defendem a intervenção militar, pois creem que essa experiência atenderá seus interesses”, esclarece Da Costa Silva.
Além disso, a preocupação com o estabelecimento e preservação das instituições democráticas ocorreu em detrimento da formação do espírito democrático na sociedade. A população não luta por essas instituições, que, infelizmente, não podem se autodefender,
De acordo com o professor, isso está ligado à educação. ‘’A transição democrática não foi acompanhada de uma ação na construção de uma memória crítica sobre o regime militar e a defesa da democracia. Parte da população não tem acesso ao conhecimento histórico e é vítima de informações – ou, melhor dizendo, desinformações — que chegam pelas redes sociais.’’
Nesse contexto, concepções equivocadas sobre o que foi o período militar acabam se disseminando, levando à sua relativização e defesa. É o que defende Sônia Brandão, formada em História pela PUC/SP, professora do Colégio Santa Maria.
‘’Fica a ideia de que aqueles foram anos de glória, do chamado ’Milagre Brasileiro’, e não havia corrupção, o que é uma mentira. Se, na primeira metade do regime, o ’bolo’ cresceu, é verdade que a segunda metade foi um momento de pressão inflacionária, empobrecimento da população, em que a distribuição de renda ficou mais polarizada. Isso sem levar em conta os escândalos de corrupção envolvidos na construção de obras de grande porte, cujos gastos eram mantidos em segredo. Nunca saberemos o montante desviado’’, explica ela.
A crença no salvacionismo militar, por boa parte da classe média avessa à corrupção, implica a convicção de que as Forças Armadas são incorruptíveis. No entanto, Sônia conta que era impossível, no período autoritário, a sociedade civil atuar para controlar os gastos do governo ou denunciar a corrupção. Não havia órgãos fiscalizatórios, a imprensa era censurada e, com as dissoluções do Congresso Nacional, as contas públicas não eram analisadas, o que, evidentemente, resultava em um enorme desvio de dinheiro.
Ditadura Militar: Lei da Anistia
A lei da Anistia, promulgada em 1979 – que impedia a criminalização de servidores públicos, militares e sindicalistas por atos realizados no regime -, é outra das razões da ditadura militar ainda ser uma ‘’ferida aberta’’ na história do país. Como a tortura só passou a ser considerada crime após a Constituição de 1988, o ministério da Defesa manteve sua decisão de anistia, logo, os culpados por atos desumanos saíram impunes.
‘’Essa lei buscava a transigência entre sociedade civil e Forças Armadas, no entanto não resolveu os assuntos entre os dois lados’’, explica Napolitano. ‘’Além disso, acabou por tornar válida a ideia de que o regime militar foi uma resposta necessária a um quadro marcado pela Guerra Fria e não um sistema cruel de repressão dos direitos. Se, por um lado, a lei evitou conflitos políticos mais sérios, por outro, não possibilitou o compromisso da democracia brasileira com o processo de autocrítica e remissão do passado autoritário, em suas várias camadas.’’, completou.
Memória frágil e a Ditadura Militar
Enquanto há destaque para o nome de ditadores na porta de instituições de ensino, trabalhadores que morreram na luta pela democracia não têm o devido reconhecimento. Infere-se, portanto, que a ditadura militar não é lembrada da forma como deveria.
O ex-preso político Ivan Seixas atribui a falta de valorização da memória sobre a ditadura à ação de cumplicidade dos militares com os empresários e outros poderosos – chamados ‘’homens de bem’’ – que sustentaram o regime e financiaram a tortura até seus dias finais, acarretando a omissão e supressão da verdade.
‘’O regime era mantido pelos empresários que eram beneficiários da ditadura. Eram cúmplices. Quando houve a redemocratização, eles não queriam nem saber de apuração, porque a verdade iria chegar neles. Então essa cumplicidade garantiu a impunidade. Não se pode colocar os assassinos no banco de réus devido ao medo que poderiam denunciar o nome desses financiadores. Esse pacto de silêncio fragilizou a memória sobre o regime’’, conta Ivan.
O ex guerrilheiro afirma ainda que a Justiça de Transição – período pós-violência de Estado, usado para ‘’passar a história a limpo’’ – é apoiado em três pilares: conhecimento dos fatos; o conhecimento da memória da vítima e do assassino; e a justiça propriamente dita, para que a sociedade tenha uma demonstração de que a barbárie não é tolerada, a democracia tem valor e que não se dá poder a ditadores.
Entretanto, ele diz que ‘’no Brasil, esses três fatores foram distorcidos. A verdade sempre foi apontada pelas vítimas, pelas famílias dos desaparecidos, que sempre cobraram onde estão os desaparecidos e quem matou. Os fatos só vão ser conhecidos quarenta anos depois. Além disso, culpados foram inocentados, o que gera essa memória frágil. A crueldade tem que ser passada para não ser banalizada. A sociedade é comprometida com o silêncio que os empresários impuseram’’.
Segundo Sônia Brandão,não podemos deixar que a memória do horror seja esquecida, e isso deve ser moldado na educação. ‘’Sociedades que escondem seu passado têm uma democracia mais frágil, que é o caso brasileiro. O fato do Brasil ter anistiado os ditadores faz com que eles virem nomes de ruas, nomes de praças, e a sociedade esqueceu o quanto eles pesaram contra a democracia’’, sustenta a professora.
Ainda que no Brasil — país onde a educação é pouco valorizada — seja difícil criar pontes entre o conhecimento histórico, a educação e o debate político, Marcos Napolitano defende: ‘’Cabe a nós criarmos uma memória sobre a ditadura eficaz para guiar o cidadão na defesa das liberdades públicas e do progresso social mais amplo possível, mesmo em uma sociedade plural, com muitos interesses conflitantes’’.
Ceticismo doente e a Ditadura Militar
Em 1996, João Baptista Figueiredo, ex-presidente da República e ex-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), disse ao Estado de S. Paulo que ‘’se houve a tortura no regime militar, ela foi feita pelo pessoal de baixo, porque não acredito que um general fosse capaz de uma coisa tão suja’’. A afirmação, obviamente, corresponde a uma mentira, que, muitas vezes, ocasiona na concepção, entre os mais ignorantes e céticos, de que, durante o período autoritário, a tortura ocorria só em casos isolados. No entanto, os abusos foram práticas metódicas, feitos em instalações estatais por mãos especializadas.
Ivan Seixas conta que choques elétricos, pancadas, afogamentos e murros na cabeça faziam parte de seu cotidiano durante o tempo em cativeiro. ‘’Pensar em direitos humanos era uma ilusão. Havia até um manual de como os militares deveriam torturar para extrair confissões. Eu tinha certeza de que iria morrer. O barulho do abrir portas era exasperante porque você sabia que alguém seria torturado. Tortura não era feita às escondidas, era uma política estatal, de alto a baixo, do ditador ao carcereiro. Todos faziam parte de uma cadeia extensa do horror’’, diz ele.
Além disso, o ex-preso político explica que a violência era um ato exercido em todas as camadas da sociedade: ‘’Para nós da guerrilha e opositores políticos, tinha o DOI-CODI e o DOPS, mas para a população civil — aqueles que não estavam engajados na luta — tinha o Esquadrão da Morte, grupos de policiais que saíam nas periferias e matavam pessoas que representavam algum tipo de ameaça. O Estado brasileiro foi transformado em uma máquina de guerra contra seu povo.’’
Por isso é que, para ele, ‘’ pessoas que pedem o AI-5 e a volta da ditadura são idiotas. O que a gente vê nesse momento é uma negação da realidade’’.
‘’Todas as ditaduras perseguem, todas as ditaduras censuram, todas as ditaduras prendem pessoas, todas as ditaduras fecham partidos’’, afirma Sônia Brandão. ‘’Só se cura a fragilidade da democracia brasileira com mais democracia. Não existe ditadura para aperfeiçoar a democracia, e quem defende isso precisa estudar mais.’’
Foram 21 anos em que a censura, o medo, a violência e a tortura fizeram parte do dia a dia de milhares de brasileiros. Infelizmente, há ainda gente que defende o regime.
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Por Giulia Lang – Fala Cásper!