Conheça um pouco sobre a virada do ano em Boracéia, litoral norte de SP
“Vou deixar minhas mercadorias aqui e vocês olham pra eu dar uma passada no banheiro?” Foi assim que Janilson chegou na barraca que estava com minha família e alguns amigos em Boracéia, litoral norte de São Paulo. A confiança imediata foi tanta que o ambulante, além de deixar todos os chapéus que carregava por aí para garantir sua renda, deixou conosco também sua bolsa com todo dinheiro arrecadado e seu celular.
Para mim e todos que estavam ali, a tranquilidade do rapaz em deixar tudo que tinha na nossa frente e sair, gerou certa estranheza. Dias depois descobrimos que, na parte da praia de Boracéia localizada na frente do condomínio Morada da Praia, as coisas funcionavam assim. Apesar das cerca de 40mil pessoas que estavam no gigantesco condomínio na época do ano novo, a confiança na segurança local era surpreendente. No caminho da casa que havíamos alugado até a praia (cerca de 5km), víamos, diariamente, casas destrancadas, bicicletas para o lado de fora, pessoas caminhando na rua com seus celulares, câmeras e outros utensílios na mão.
Na praia, a tranquilidade continuava. O trânsito para chegar até lá não se espelhou na quantidade de pessoas na areia, pelo menos não nos primeiros dias da viagem (26 e 27 de dezembro). Bastava andar um pouco mais para o sul para se deparar com uma parte da orla vazia, sem guarda-sóis ou banhistas. Um ambiente perfeito para observar a natureza, meditar e ouvir o som do mar e do vento, batendo de um lado para o outro.
A calmaria diurna, porém, se transformava quando a noite chegava. Em uma dessas noites, enquanto andava com alguns amigos, percebemos a movimentação dos seguranças, fechando algumas ruas e se preparando, conversando e mandando sinais via rádio. Curiosos pela transformação na geografia e no ambiente, fomos até um deles entender o que estava acontecendo: “Estamos fechando a rua porque agora à noite vai ter um fluxo de Funk”, respondeu serenamente.
Mas o que é exatamente um fluxo de funk, você deve estar se perguntando. Bom, um dos garotos que estavam comigo perguntou a mesma coisa. Segundo uma reportagem publicada pela revista Vice em 2014, “o fluxo é um baile funk espontâneo, feito na rua com carros equipados com caixas de som absurdamente potentes e a boa vontade da galera que busca um jeito de relaxar sem gastar tanto dinheiro.” Exatamente isso. Durante a noite, algumas das ruas calmas do condomínio eram fechadas e se transformavam completamente. As poucas pessoas caminhando durante o dia se tornavam centenas dançando e cantando ao som de carros e camionetes com som alto e funks no último volume. A segurança, pelo pouco que vi, continuava a mesma: as mesmas casas com portões abertos, as mesmas bicicletas soltas por aí. A diferença? As pessoas. No meio da ‘agitação’, como outro segurança descreveu, via-se majoritariamente jovens, em contraponto com a mistura de idades presente durante o dia.
As diferentes idades e a estrutura de Boracéia
A nossa rotina era a seguinte: acordar, pegar o carro, ir até a portaria, estacionar em uma das vagas disponíveis, atravessar uma passarela que passava por cima da pista e chegar a praia. Entre nós, porém, havia uma senhora de 73 anos, com dificuldades locomotoras devido à diferença no tamanho das pernas. Atravessar toda a passarela provavelmente demoraria muito e com certeza não seria nem um pouco confortável. Mas a dinâmica do movimento foi algo que, desde o primeiro dia, não precisamos nos preocupar. Bastou algumas perguntas às pessoas que iam com frequência à praia e logo descobrimos um portão de acessibilidade.
Um lugar para parar o carro bem próximo à areia, destinado “APENAS a pessoas portadoras de alguma deficiência, idosos e grávidas.” Apesar da palavra “apenas” estar exatamente como a coloquei acima, grafada em caixa alta, alguns aproveitadores de plantão sempre tentavam passar com suas cadeiras de praia e isopores pelos portões, de acesso muito mais fácil. Mas bastava uma tentativa para ser repreendido pelo segurança. No pouco tempo que fiquei ali, vi diversas personalidades discutindo e tentando argumentar os motivos pelos quais precisava sair ou entrar por lá. Não adiantava. Podia falar o que fosse, o guarda que ficava (quase) sempre nessa portaria era bem rígido em relação a quem poderia ou não passar.
Além dessa entrada acessível, a praia contava com quiosques reservados para portadores de alguma deficiência, com cimento em cima da areia para facilitar a locomoção das cadeiras de rodas. Por falar em cadeiras de rodas, quem precisasse também podia pegar algumas disponibilizadas pelo condomínio, feitas justamente para esse ambiente: com rodas maiores e tecidos diferentes das usuais, que possibilitavam a locomoção na areia e até mesmo nos níveis mais rasos do mar.
Não só os mais velhos e portadores de alguma deficiência tinham seu lugar na praia, as crianças também podiam contar com espaços como parquinhos públicos montados sobre a areia para garantir a diversão quando os clássicos baldinhos enjoassem. Aquela parte da praia de Boracéia localizada na frente do condomínio Morada da Praia, era um espaço um tanto quanto democrático, para os diferentes gostos, estilos, idades e necessidades.
A noite da virada
Entre dias de sol, areia, açaí, tempurá e pastel, finalmente chegara o dia que todos estavam aguardando: a noite da virada. Por uma questão de sorte (ou falta dela), meu caminho da casa até a praia nessa noite não foi lá muito agradável. Minutos antes de sair para a celebração, a casa onde estávamos acabou a água. Graças aos ansiosos de plantão, todos ali já estavam prontos, logo, não sofremos tanto com a pia seca. No caminho até a orla, nos deparamos com um fio explodindo e um carro com a roda toda amassada após uma batida que não conseguimos desvendar os motivos.
Apesar do cenário não tão animador no caminho até a praia, conseguimos chegar bem cedo e pegar nosso quiosque rotineiro vazio, aliás, quase toda a praia vazia. Eram 20h30 quando começamos a arrumar nossas cadeiras e a ceia improvisada ali na areia. Impaciente, já estava começando a achar ruim termos chegado tão cedo. Mas não deu muito tempo para reclamar: as horas iam passando e a praia lotando. Nesse dia específico, devido ao grande fluxo de pessoas, a passarela estava fechada e toda a entrada e saída estava sendo através dos portões de acessibilidade, bem atrás de onde estávamos. Justamente por isso, víamos todas as pessoas entrando, em um fluxo que parecia não parar de crescer.
Entre as 20h30 e 00h, a praia se transformou quase como as ruas do condomínio se transformavam do dia para a noite. Todos os vazios foram preenchidos enquanto o DJ tocava em cima do palco no lado direito da passarela. Eram milhares de pessoas esperando os 18min de fogos e a entrada do novo ano. Eram meus amigos e familiares aguardando, aflitos com a quantidade de pessoa que não parava de descer, era Janilson com seus chapéus olhando para cima ansioso para chegar o dia de voltar para Paraíba e reencontrar sua esposa e sua filha. Eram 366 dias novos chegando através de chamas pelo céu. Era o ano novo em Boracéia.
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Por Helena Leite – Perdida por Aí – Fala! Cásper