A ditadura brasileira foi um dos períodos mais obscuros e cruéis da história do nosso país, época onde os direitos civis eram violados e as pessoas sofriam com a intensa censura. A solução foram os protestos, que passaram a ser uma forma de resistência contra o governo, um dos principais foi Passeata dos Cem Mil, organizada pelo movimento estudantil. Dentro do futebol não foi diferente, a democracia corintiana foi um desses movimentos que surgiram contra o regime e que poucas pessoas sabem da sua história e importância para o esporte e política.
Processo de formação da democracia corintiana
O Corinthians, nas décadas de 40, 50 e 60, tinhas os mesmos presidentes eleitos com longos mandatos, como foi com Alfredo Ignácio Trindade, que ficou uma década na presidência, além da crise de títulos que vivia. Tudo mudou nas eleições de 81, o até então presidente Vicente Matheus, que tinha ficado na diretoria durante 9 anos, não podia se reeleger. Como ele não queria sair do poder, Matheus indicou para a presidência Waldemar Pires, e ele se candidatou como vice.
No fim das contas, Waldemar foi eleito presidente e Matheus se tornou vice-presidente. Matheus imaginou, por ter experiência como presidente do Corinthians, que ele comandaria o clube, mas não foi isso que aconteceu. Waldemir Pires não concordava em ser boneco de fantoche de Matheus, que acabou afastando do cargo de vice.
O novo vice seria Orlando Monteiro Alves. Orlando, com aval de Waldemir, chamou para ser diretor de futebol do Corinthians seu filho Adilson Monteiro Alves, um jovem sociólogo. Waldemir Pires e Adilson Monteiro Alves foram duas peças importantíssimas para o início da democracia corintiana.
A democracia corintiana
A diretoria de Waldemir deu total confiança para Adilson poder trabalhar no clube, colocando em prática suas ideias e pensamentos. Adilson não tinha a menor ideia de como era dirigir um clube, pois era a primeira vez que ele fazia esse tipo de trabalho. Por ser estudante de sociologia, ele sabia como comandar um grupo, isso ajudou muito na sua gestão no clube. Adilson achava que o futebol praticado na época era conservador e, de certa forma, ditador. Também acreditava em uma mudança necessária no futebol, defendendo mais liberdade aos jogadores e uma diretoria menos dominante.
Adilson foi um gestor totalmente diferente para a época, costumava sempre ouvir as opiniões dos jogadores e outros membros da equipe corintiana. Isso fez todo grupo abraçar essa nova ideia revolucionária de Adilson. Umas das primeiras mudanças democráticas feitas pelo movimento foi acabar com a concentração.
A concentração era algo que Adilson não concordava, pois achava que era uma espécie de prisão para o jogador. Então, por votação, estabeleceram que os casados e com filhos não eram obrigados a se concentrar, já os solteiros eram obrigados.
A questão dos votos foi umas das ideias que marcaram a democracia corintiana, o movimento aderiu à ideia de que todas as decisões tomadas pelo clube, na área de futebol, deveriam passar por uma votação, em que todos os membros do clube tinham o poder de expor sua opinião de voto, ou seja, roupeiro e diretor de futebol tinham a mesma importância na democracia corintiana, suas opiniões tinham o mesmo valor de decisão.
Outra questão que o movimento adotou foi a permissão dos jogadores de se reunirem em bares e beber cervejas nas voltas das viagens. Ia totalmente ao contrário do que a sociedade estava acostumada. Grande parte da imprensa da época, principalmente a mídia tradicional, via a democracia corintiana com maus olhos. A grande maioria dos jornalistas, por ser conservadora, era contra o movimento. Poucos veículos de comunicação compravam a ideia da democracia, a revista Placar era uma defensora do movimento.
A origem do nome e a expansão da marca
Os porta-vozes, que eram os jogadores Sócrates, Vladimir e Casagrande, foram fazer uma palestra na PUC para explicar mais sobre essa democracia corintiana que estava surgindo. Estavam presentes o moderador do debate, Juca Kfouri, jornalista, Adilson e o Washington Olivetto, responsável pelo marketing do Corinthians.
O debate estava percorrendo, até que Kfouri citou uma frase do escritor Millôr Fernandes, que dizia que se o Brasil continuasse do jeito que estava, as pessoas lutando muito contra o regime militar, o país iria se tornar um regime democrático. Na mesma ideia, Kfouri disse, em seguida, que se o Corinthians continuasse do jeito que estava, iria passar para uma democracia também, uma democracia corintiana. Até que Washington chegou perto do jornalista e falou: “Você acaba de batizar o nome do movimento”.
Em 1982, o Corinthians procurava patrocinadores, em um tempo em que poucos clubes tinham grandes marcas estampadas nos uniformes. Em uma reunião com a diretoria, Olivetto propôs a ideia de colocar slogans mundialmente conhecidos para criar uma empatia com a público. Em umas dessas ideias surgiu de estampa a fonte da Coca-Cola no “Corintiana”.
O evento que marcou de vez o movimento ocorreu nas vésperas das eleições de governadores de 1982. No Brasil, desde o golpe de 1964, não podia votar. Em 1982, a ditadura dava indícios de declínio e uma possível abertura política.
Em uma das reuniões, o Corinthians discutia uma forma de atrair publicidades para sua camisa, tempo em que a publicidade começava a ser liberada. Inicialmente, a proposta era veicular na parte de trás do uniforme a palavra “Aluga-se” ou “Anuncie aqui”. Como a ideia era relacionar com algo político e dia 15 de novembro de 1982 aconteceria as eleições para governadores, senadores e deputados, a diretoria resolveu usar uma mensagem de incentivo ao voto, “Dia 15 vote”, para que os brasileiros comparecessem às urnas. A mensagem foi usada cinco partidas antes do dia da votação.
A filosofia de trabalho da diretoria dando mais liberdade aos jogadores e ouvindo todos do clube acabou dando resultado, o Corinthians saiu do jejum de títulos, sendo bicampeão Paulista de 1982 e 1983, o que não acontecia há três décadas, contra o São Paulo, as duas vezes no Morumbi. Inclusive, na final do Paulista de 1983, os jogadores do Corinthians entraram em campo com uma faixa às mãos. Nela, mais uma mensagem: “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”.
O movimento foi tão grande que ultrapassou o campo, começou a ter presença na política do país. Sócrates, Vladimir e Casagrande passaram a participar de comícios que exigiam abertamente as Diretas Já. Os jogadores e membros do clube frequentemente atuavam em palanques e faziam decursos com ideais de liberdade e democracia, solicitando com rigor o direito do voto para presidente.
A decadência
Com o calor do momento com a volta das eleições diretas para presidente, Sócrates que já tinha conversas com o clube italiano Fiorentina, declarou, em 1984, em um dos comícios que participava, que só sairia do Corinthians se a Emenda Dante de Oliveira não fosse aprovada. A proposta iria restaurar as eleições diretas para presidente da República no Brasil.
Aconteceu que o congresso não aprovou e Sócrates acabou saindo do Corinthians. Outros jogadores importantes do movimento saíram também, como Vladimir que foi para o Santo André, e Casagrande que saiu por empréstimo para o São Paulo.
O estopim para o fim da democracia corintiana foi as eleições presidenciais do Corinthians de 1985. Estavam concorrendo Adilson Monteiro Alves, um dos líderes da democracia corintiana, e Roberto Pasqua, membro da Aliança Renovadora Nacional (Arena), que era contra a redemocratização do país e o movimento. Em abril de 1985, Pasqua derrotou, em eleição que para muitos foi fraudulenta, o candidato Adilson Monteiro Alves, por 162 votos a 130, decretando o fim da democracia corintiana.
Sabe aquele famoso ditado: “Futebol e política não se misturam”? A democracia corintiana é um exemplo de que se discute, sim, e deve ser discutido. Como diz Kfouri: “Futebol e política, política e futebol se misturam como água e sabão”.
O movimento marcou gerações que tomaram conhecimento da política do país a partir do futebol, torcendo ou não para o Corinthians, é inevitável dizer que o clube foi importante para o movimento que antecedeu as Diretas Já. A democracia corintiana foi um gatilho a mais para a população lutar e protestar, reivindicando o direito de votar. Um movimento que é pauta para o mundo inteiro. Para o futebol, uma ideia nova e revolucionaria de um simples estudante de sociologia, que nunca tinha trabalhado no ramo do futebol, que mudaria para sempre a história do clube e do futebol.
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Por João Martins – Fala! Metodista