“Podemos dizer que esse mal radical surgiu em relação a um sistema no qual todos os homens se tornaram igualmente supérfluos. Os que manipulam esse sistema acreditam na própria superfluidade tanto quanto na de todos os outros, e os assassinos totalitários são os mais perigosos porque não se importam se eles próprios estão vivos ou mortos, se jamais viveram ou se nunca nasceram. O perigo das fábricas de cadáveres e dos poços do esquecimento é que hoje, com o aumento universal das populações e dos desterrados, grandes massas de pessoas constantemente se tornam supérfluas se continuamos a pensar em nosso mundo em termos utilitários. Os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários inventados para tornar os homens supérfluos”. (ARENDT, 2012, p. 609)[1]
Jojo Rabbit está longe de ser um filme meramente cômico que procura atenuar os horrores perpetrados pelo totalitarismo do século XX. Trata-se, na realidade, de uma verdadeira forma de denunciar o nazifascismo a partir de uma concepção filosófica tipicamente “arendtiana”. Contudo, antes de entrar no mérito ético e político da obra cinematográfica, faz-se necessário expor brevemente o enredo.
A história é contada com foco na trajetória de Jojo (Johannes Betzler), um garoto de 10 anos e defensor do regime nazista, cujo amigo imaginário era Adolf Hitler. Logo no início, ele é convocado para um acampamento de fim de semana no qual deveria se tornar um homem e aprender a ser “um bom nazista” por meio de algumas práticas, tais como: queimar livros, técnicas de identificar judeus, bem como formas de matá-los, dentre outras.
Apesar da proposta soar como nefasta e um verdadeiro abjeto, o filme trata a questão a partir de um tom de humor, de escracho, a começar pelo próprio diretor travestido como um Hitler repetidor de clichês do regime nazista e extremamente cômico.Tudo isso com o intuito de promover uma reflexão acerca da dimensão do totalitarismo, objetivando, em última instância, a promoção de uma crítica contundente ao ideal ditatorial do século XX.
Ao longo do filme, somos apresentados aos outros personagens, como a mãe de Jojo (Rosie Betzler), que serve como um alívio em meio ao clima de repressão reinante, por mais que tolere e respeite a opinião política de seu filho. Outra personagem extremamente relevante é Elsa, a judia protegida pela própria Rosie, que a esconde no sótão da casa e zela constantemente por sua segurança.
Pode-se dizer que o relacionamento entre Elsa e Jojo sustenta o filme e a partir dessa relação, o personagem central começa a se questionar acerca de seus preconceitos e da superficialidade que sustenta o ideal nazista.
Esta, por sinal, é uma das maiores mensagens enviadas pelo roteiro: o convívio das diferenças, seja através de mãe e filho ou mesmo quando aparece Elsa (Thomasin McKenzie, correta), a judia escondida no sótão da casa, no melhor estilo Anne Frank. Seu convívio com Jojo é de uma riqueza imensa, seja pela denúncia dos preconceitos ou mesmo pela profusão de mentiras alardeadas, ambas impulsionadas pela ignorância e má-fé. [2]
Vale ressaltar que o principal traço que percebemos ao longo do filme é o fato de que a maioria dos personagens (com exceção de Elsa e da mãe de Jojo) são extremamente rasos intelectualmente, superficiais em suas falas e pouco profundos na justificação ideológica de sua cosmovisão, pois são meros repetidores de clichês. São figuras patéticas e suas falas se resumem a comentários jocosos e depreciativos acerca dos judeus. Esse fato não é somente para incrementar o aspecto cômico do filme, mas também para retratar um dos principais conceitos da filosofia política, a saber: a banalidade do mal.
O conceito supramencionado foi desenvolvido por Hannah Arendt (1906-1975). Em seu livro Eichmann em Jerusalém, a pensadora procurou descrever e relatar o julgamento de Adolf Eichmann, um oficial nazista responsável por ordenar o transporte de judeus para os campos de concentração. Arendt afirma que quando foi convidada para cobrir o julgamento, esperava encontrar um ser essencialmente maligno, diabólico, um fiel representante do mal radical, contudo, sofreu uma decepção quando se deparou com uma figura comum, frívola.
“(…) quando ela se deparou com Eichmann – aquele burocrata responsável pelo transporte de milhares de judeus para vários campos de extermínio na Europa – e seus discursos carregados de clichês, foi um verdadeiro anticlímax, pois havia um enorme descompasso entre a magnitude dos crimes cometidos e aquela figura normal, superficial, um verdadeiro misólogo. Eis ali, cercado por uma cabine de vidro, um tipo ideal do mal banal. Pelos depoimentos prestados, ela percebeu que Eichmann não era vilão e nem antissemita, mas era um lídimo representante da banalidade do mal.” (MORAES, 2016)[3].
A autora diz: “o maior mal não é o radical, não possui raízes e, por não ter raízes, não tem limitações, pode chegar a extremos impensáveis e dominar o mundo todo” (ARENDT, 2004, p. 160). Arendt é incisiva na afirmação de que o mal praticado por muitos nazistas não se tratava de um mal radical, mas de uma espécie de “banalidade do mal”, sem raiz, sem profundidade, cujo conteúdo resumia-se ao mero cumprimento de ordens.
“Não estávamos interessados aqui na maldade, que a religião e a literatura têm tentado entender, mas no mal; não estávamos interessados nos pecados e nos grandes vilões, que se tornaram os heróis negativos na literatura e que, geralmente, agiam por inveja e ressentimentos, mas em todos os que não são maldosos, que não tem motivos especiais e, por essa razão, são capazes de um mal infinito; ao contrário do vilão, eles nunca encontram sua mortal meia-noite” (ARENDT, 2004, p. 256)[4].
O perigo do Mal Banal reside em sua característica primordial: é como um fungo, não tem raízes sólidas, mas se espalha rapidamente e, desta forma, desafia as palavras e os sentimentos. A banalidade do mal é uma espécie de incapacidade de reflexão acerca de si mesmo, acerca de suas próprias ações, bem como se aproveita da falta de habilidades comunicacionais para promoção de uma cosmovisão fundamentada na alienação e na própria abolição do homem.
“Em vários momentos e ao longo de todo o livro Eichmann em Jerusalém, Arendt reforça uma característica marcante que acompanha todo e qualquer representante da banalidade do mal, a saber, a incapacidade de elaboração de um pensamento próprio, da falta de habilidade comunicacional e uma memória que se não era ausente, mostrava-se, todavia, seletiva.” (MORAES, 2016).
A capacidade de pensar, ou seja, o exercício do diálogo socrático consigo mesmo é o que qualifica o ser pessoa, segundo Arendt. “O pensar é o diálogo silencioso solitário entre mim e mim mesmo, é o estar consciente de mim-mesmo (…)” (MORAES, 2016). Eichmann não era um indivíduo desprovido de conhecimento; vale ressaltar que sua profissão exigia informações técnicas e conceituais, bem como uma certa lógica de racionalidade; pois bem, o que lhe faltava não era o conhecimento, mas sim a capacidade de reflexão, de pensar sobre seus atos e sobre a legitimidade moral de uma conduta.
Por este motivo, Eichmann é tido como um exemplo fidedigno da banalidade do mal, porque ao abrir mão da faculdade do pensar e da capacidade de julgamento, reduziu seu comportamento a repetição pífia de clichês nazistas. “Ao se recusar a pensar, ele e tantos outros na Alemanha Nazista, foram arrebatados pela lógica da razão de Estado que se justificava a partir do direito de excluir o “outro”, que naquele contexto foi simplesmente tornado supérfluo” (MORAES, 2016).
“Não é o assassinato que é perdoado, mas o assassino, a sua pessoa, assim como ela aparece nas circunstâncias e intenções. O problema com os criminosos nazistas foi precisamente que eles renunciaram voluntariamente a todas as qualidades pessoais, como se não restasse ninguém a ser punido ou perdoado. Eles protestaram repetidas vezes, dizendo que nunca tinham feito nada por sua própria iniciativa, que não tinham tido nenhuma intenção, boa ou má, e que apenas obedeceram ordens. Em outras palavras: o maior mal perpetrado é o mal cometido por ninguém, isto é, por um ser humano que se recusa a ser uma pessoa. Dentro da estrutura conceitual dessas considerações, poderíamos dizer que o malfeitor que se recusa a pensar por si mesmo no que está fazendo e que, em retrospectiva, também se recusa a pensar sobre o que faz, isto é, a voltar e lembrar o que fez (que é teshuvah, isto é, arrependimento), realmente deixou de se constituir como alguém. Permanecendo teimosamente como ninguém, ele se revela inadequado para o relacionamento com os outros que, bons, maus ou indiferentes, são no mínimo pessoas” (ARENDT, 2004, p.177).
Obedecer a uma ordem simplesmente porque é a Lei, porque é a opinião da maioria ou até mesmo aderir a uma ideia pela possível ascensão social, é simplesmente renunciar a qualidade de pessoa, promovendo a dissolução da personalidade moral, da liberdade, da consciência e da própria noção de responsabilidade.
Infelizmente, o espírito da banalidade do mal se manifesta intensamente na era contemporânea através das ideologias políticas, da cultura da bajulação política messiânica bem como da conivência cega aos projetos governamentais. A atitude reflexiva deve ser promovida em prol da busca pela Verdade e do bem comum. Como dizia George Orwell, “O que é realmente assustador quanto ao totalitarismo não é que cometa ‘atrocidades’, mas que agrida o conceito de Verdade objetiva”.
Enfim, os personagens em Jojo Rabbit eram uma espécie de alegoria da banalidade do mal, pois eram extremamente superficiais e, mesmo diante das maiores atrocidades, faziam brincadeiras jocosas e repetiam constantemente clichês nazistas. Até mesmo terceirizavam a culpa dos atos imorais e nunca assumiam a responsabilidade pelas ações próprias, pois toda a imoralidade era exclusivamente culpa dos judeus. O próprio Jojo era um representante dessa espécie de mal, mas com a convivência com Elsa foi trilhando o caminho para redenção.
Creio que as mensagens centrais do filme sejam: a coragem de pensar é um agir político por excelência; não deixe uma ideologia política dominar sua consciência e seu ser; não abra mão da faculdade de pensar; não seja um instrumento nas mãos de governos e das religiões políticas; não se torne um arquétipo da banalidade do mal.
Por vezes, somos tentados a preencher nosso vazio existencial com uma espécie de “religião política”passível de nos levar ao mal banal, contudo, devemos nos lembrar que o ser humano não se reduz meramente ao ser político, pois a integralidade do Ser não pode ser compreendida somente a partir do materialismo, mas de uma cosmovisão pautada na Verdade e na concepção holística do homem.
O homem é, em virtude de sua autotranscendência, um ser em busca de sentido. No fundo, é dominado por uma vontade de sentido. No entanto, hoje em dia essa vontade encontra-se em larga escala frustrada (…) Quando me perguntam como explicar o advento desse vazio existencial, cuido então de oferecer a seguinte fórmula abreviada: em contraposição ao animal, os instintos não dizem ao homem o que ele tem de fazer e, diferentemente do homem do passado, o homem de hoje não tem mais a tradição que lhe diga o que deve fazer. Não sabendo o que tem e tampouco o que deve fazer, muitas vezes já não sabe mais o que no fundo, quer. Assim, só quer o que os outros fazem- conformismo! Ou só faz o que os outros querem que faça – totalitarismo.
Como diria Viktor Frankl
Fontes:
[1]ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012
[2]RUSSO, Francisco. CRÍTICAS ADOROCINEMA: Jojo Rabbit. Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-258998/criticas-adorocinema/
[3]MORAES, Gerson Leite de. O Mal Banal e a difícil tarefa do perdão. Revista Estudos Filosóficos nº 17/2016 – versão eletrônica – ISSN 2177 – 2967.
[4]ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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Leonardo Leite – Reaviva Mack – Universidade Presbiteriana Mackenzie