Coringa é muito diferente dos filmes de super-heróis com os quais estamos acostumados. Tão diferente, que se torna capaz de agradar até mesmo quem não curte o gênero. Finalmente, descobrimos a trajetória de um dos vilões mais cruéis do universo das HQ’s. A construção da origem de Arthur Fleck e a atuação de Joaquin Phoenix garantem o sucesso da produção.
O filme traz um tom realístico à história do vilão. Durante a exibição, percebe-se que todos os problemas que assombram Arthur, em menor, igual ou maior proporção, poderiam fazer parte da vida de um indivíduo comum. O Coringa nada mais é do que alguém repleto de problemas psicológicos e psiquiátricos, enganado e sabotado por conhecidos, abusado por desconhecidos e negligenciado pelo governo.
Em relação ao governo, é importante mencionar o quanto Gotham, com ruas, metrô e ritmo que lembram Nova York, é novamente um “personagem” no filme. A cidade parece abandonada pelas autoridades, e uma greve de garis piora a situação. O ambiente não faz bem a nenhum cidadão, especialmente a alguém com problemas mentais.
Constantemente, Arthur tenta provocar risos das pessoas, seja por meio de seu trabalho como palhaço em ruas e hospitais, seja por meio de suas tentativas de se tornar um comediante de stand-up. Fleck enlouquece quando percebe que a verdadeira piada sempre foi ele.
A interpretação do personagem Coringa sempre causou muitas expectativas, e comparações entre atuações acabam surgindo. Os “Coringas” de Joaquin Phoenix e Heath Ledger, os mais icônicos até hoje, são resultados de propostas muito diferentes. Por isso, não há um melhor. Ambos os trabalhos foram muito bem executados, de acordo com a proposta de cada enredo.
Coringa, do diretor canadense Todd Phillips, busca provocar reflexões políticas e morais a respeito da atenção direcionada a pessoas com problemas psíquicos. A negligência tão presente em nossa sociedade pode ser “sintetizada” por uma das mais icônicas frases do filme: “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”, um desabafo de Fleck em seu diário.
Talvez o longa possua tendência a legitimar a violência. Após presenciar tanto sofrimento de Arthur, há tentação de concordar com as ações de Coringa. Nos Estados Unidos, por exemplo, o receio de atentados após a estreia causou mobilização da polícia. De fato, a história é construída de forma a causar uma possível influência a pessoas que se identifiquem com Fleck. A discussão sobre isso é extensa e complexa, afinal qual o preço da tentativa de provocar uma discussão necessária e tantas vezes esquecida? Provavelmente, causar tais situações não foi a intenção dos produtores, mas a atitude dos norte-americanos foi válida e prudente.
O filme provoca angústia, tensão e desespero, ao notarmos o quanto pessoas à margem da sociedade estão sujeitas às piores situações. Não se nasce vilão, torna-se vilão. É nosso dever enquanto sociedade cobrar maior atenção a esses indivíduos e, assim, evitar atingir níveis preocupantes de problemas sociais. Diariamente, nos esquecemos ou fingimos nos esquecer da existência dessas pessoas e, assim, legitimamos, mesmo que indiretamente, situações vividas por Arthur Fleck.
A forte carga realística e emocional substitui os superpoderes e efeitos especiais geralmente presentes em filmes de super-heróis. Não precisamos de cenas com as mais terríveis e estranhas torturas que o vilão executa nos quadrinhos. O choque fica por conta das inúmeras humilhações que alguém pode passar sem que as pessoas a sua volta percebam e a ajudem (e em como somos capazes de, mesmo sem notar, gerar vilões dos mais diferentes tipos no mundo real).
O grande efeito especial fica por conta da incrível atuação de Joaquin Phoenix, com sua surpreendente preparação física para viver o personagem, e do roteiro forte o suficiente para prender os espectadores do início ao fim do filme. “Coringa” é capaz de superar nossas expectativas, nos faz pensar por dias a fio e deixa a sensação de tempo e dinheiro bem gastos.
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Thábata Bauer Lima – Fala!Mack