domingo, 13 outubro, 24
HomeEventosA Semana de Alta-Costura: Tudo O Que Você Precisa Saber Sobre O...

A Semana de Alta-Costura: Tudo O Que Você Precisa Saber Sobre O Que Aconteceu Durante A Semana de Moda

Em 22 de Janeiro de 2024, o mundo da moda abriu a caixinha de Pandora que caracteriza a semana de Alta-Costura com o desfile estonteante de Schiaparelli.

Como todo ano, Paris se fecha para as atrocidades mundanas e constrói sua sociedade contemplativa onde tudo se torna sobre, cores, tecidos, movimentos, formatos e qualquer coisa que ultrapasse a retina, atingindo em cheio o cérebro que no mesmo instante derrete em admiração.

Para quem não é familiar com esse mundo, a alta-costura é caracterizada pela moda exclusiva e sua confecção a mão com os materiais de maior prestígio e qualidade.

semana de alta-costura 2024
Continue lendo para saber o que rolou na semana de Alta-Costura 2024. | Foto: Pierre Suu/ Reprodução Getty Images

Quem dita o que é ou não é couture é a Federação de Alta-Costura da Moda, anteriormente chamada de Chambre Syndicale de la Haute Couture. Essa federação é responsável por manter os olhos nas marcas anualmente, conferindo se estão cumprindo os requisitos da Alta-Costura: ter um ateliê em Paris, empregar um staff em tempo integral de 15 pessoas, produzir peças sob encomenda com ao menos uma prova de roupa e, por fim, lançar duas coleções com pelo menos 35 confecções cada (para o dia e para a noite), uma delas sendo uma peça para noivas — que sempre desfila por último, encerrando o evento.

Sendo um dos momentos mais importantes do mundo da moda, para ilustrar o que acontece em uma semana de Alta-Costura, selecionamos os desfiles mais prestigiados da última semana. Confira!

Alta-Costura: Schiaparelli e o sci-fi que abraça Dalí, Texas e Glamour

Em 1877, Giovanni Schiaparelli — tio de Elsa Schiaparelli — , diretor do Observatório Brera em Milão, teve uma descoberta: uma série de canais, uma área tão grande quanto o Grand Canyon, marcando a superfície do planeta Marte. Foi ele quem cunhou o termo “marciano” e deu vida à nossa fascinação moderna por criaturas de lá. Uma fascinação que, de acordo com as produções do diretor criativo da grife, continua até hoje:

Intitulado ‘’Schiaparalien’’, o desfile de Schiaparelli marcou a passarela com os contos de enredos futuristas amarrados à essência da criatividade de Daniel Rosenberry em terras texanas, peças de proporções agigantadas e o surrealismo que sempre acompanha o nome de Elsa Schiaparelli.

Para a criação do conceito, Daniel se colocou a questionar o que significa ser criativo e humano na era do machine learning.

semana de alta-costura 2024
Foto: Montagem/ Divulgação.

Após se deparar com cópias de trabalhos seus sendo reproduzidos por Inteligências Artificiais e ver pessoas genuinamente se questionando ‘’quem fez melhor, Schiaparelli ou I.A.?’’, o designer quis ilustrar a emoção humana que a tecnologia não consegue replicar —  algo que ecoa o que ele fez de forma mais exagerada na temporada de alta-costura do ano passado, com suas enormes cabeças de leões.

As peças traziam bugigangas tecnológicas obsoletas, franjas em homenagens a cowboys, referências de filmes como Alien, referências do modernismo e recortes geométricos que transformam uma modelo de dois metros de altura em uma criatura que desfila com a áurea de um alienígena da realeza.

A intenção de Rosenberry dessa vez foi conflitar a ascensão desenfreada da tecnologia que estamos presenciando. As referências, como um bebê construído com dispositivos antigos — antecessores de 2007 —  representando o futuro, ou uma caneta na gola de uma camisa que foi retirada diretamente do estúdio de Schiaparelli, trazem para a passarela detalhes de consciência humana que só poderiam ser alcançados por pessoas.

A alta-costura é o último bastião artesanal da moda que ainda existe. No primeiro desfile da semana, Rosenberry consegue ilustrar a arte em sua plenitude e com maestria, apresentando uma coleção que só poderia ser singular e calorosamente humana como é, tendo sido construída por habilidades humanas.

Alta-Costura: Rahul Mishra: Uma Carta de Amor á Insetos e Répteis

Com uma das coleções mais animadoras da temporada, Rahul Mishra constrói uma narrativa pouco óbvia para a semana de alta-costura.

Inspirado pelo magnífico mundo dos insetos, o designer trouxe vaga-lumes, mariposas, libélulas e muito mais para a passarela da semana de moda.

coleção Rahul Mishra
Foto: Montagem/ Divulgação.

Enquanto aclamava esses pequenos co-habitantes como ‘’super heróis’’, a ideia por trás das peças de Rahul foi exaltar uma espécie que sofre interinamente com as mudanças climáticas. A coleção inspeciona como os humanos respondem e reagem a certas criaturas em suas casas, expondo a negligência com a qual tratamos esses bichinhos e pontuando fortemente a existência desses seres há muito mais tempo do que a nossa própria espécie.

Um dos principais pontos de partida do trabalho de Rahul foi impulsionado pela ideia da criação de um espaço voltado para conversas e que remetesse a um prato de Petri, uma referência que podemos encontrar em mais de uma modelo que caminhou pela passarela.

A ideia foi muito além do que já conhecemos na moda, acostumada a roubar texturas, cores e formas da natureza — Rahul introduziu, na verdade, a narrativa de uma outra espécie na alta-costura.

O designer tenta, ao trazer do que existe de mais natural e digno no planeta para a passarela, a construção de um diálogo consciente que busca, na primeira fileira da alta-costura, a grandiosa missão de fazer com que mais insetos sejam admirados.

A Grandeza da Quietude de Alaïa

Se distanciando do elitismo das peças de baixa usabilidade da semana de Alta-Costura, a coleção de Pret-à-Porter (pronto para usar) de Pieter Mulier para a Alaïa, apostou em roupas que antes de serem somente admiradas, fossem consideradas pelo público.

Isso significa que as peças são mais íntimas e menos pensadas na extravagância da coisa em si, reduzindo o barulho criativo que é tão característico durante a semana da Alta-Costura.

A coleção preza pelo conceito de ‘’menos é mais’’, apresentando roupas que não queriam minimizar ideias, mas apelar pelo foco e pelo nascimento de possibilidades — seja através dos tecidos, do movimento das peças, ou dos tons mais sóbrios que deram corpo para a totalidade do evento (desde a locação, até as roupas do desfile).

Para atingir o conceito idealizado, a confecção das peças da coleção foram construídas em uma única fibra, chamada lã de merino, considerada a mais nobre das lãs.

semana de alta-costura 2024
Foto: Montagem/ Divulgação.

Essa etapa do processo marca a grandeza do desfile que não faz parte da alta-costura, mas provocou o público entusiasta com tanto fervor quanto ao apresentar peças com lavagens que remetessem a jeans, mas, na verdade, eram lã.

Alta-Costura: Jean Paul Gaultier e Simone Rocha: A Junção que Casou Tendência e Essência 

Desde que se aposentou em 2020, Jean Paul Gaultier seleciona um designer emergente para confeccionar uma coleção em colaboração com a grife francesa. Esse ano, a Alta-Costura de Gaultier foi idealizada pela designer convidada Simone Rocha.

As peças de Simone Rocha são reconhecidas pela visão feminina bem lapidada da irlandesa que carrega o nome da marca. Assistindo ao desfile, revisitamos o acervo de JPG e podemos encontrar referências à suas criações antecessoras em detalhes íntimos, delicados, individuais, sensuais e femininos das peças que desfilaram.

Respeitando uma silhueta vitoriana e brincando com transparências, corsets, laços (muitos, muitos laços!), rendas cruzadas (clássicos de JPG), pérolas e volumes bem alocados, Simone Rocha cumpre o papel de estudar a casa da grife francesa e seus momentos mais icônicos.

Enquanto as modelos caminham pela passarela com as mãos para trás, somos relembrados do icônico sutiã pontudo de Madonna, da admiração de Gaultier pelas indumentárias de marinheiros, das peças que remetiam a tatuagens e das silhuetas clássicas de JPG.

coleção Jean Paul Gaultier e Simone Rocha
Foto: Montagem/ Divulgação.

A coleção de Simone Rocha pode ser definida como o equilíbrio mágico entre a liberdade e a restrição. As peças eram, indiscutivelmente, releituras de Simone — como o sutiã pontudo que remete a um par de chifres, não cones — que somente ela poderia pensar. Os detalhes do desfile também geram entusiasmo, com brincos compostos por fio de cabelo em formato de laços e pedrarias compondo a beleza da maquiagem.

Delicado e marcante, a escolha de Jean Paul Gaultier para a colaboração da alta-costura de 2024 foi uma das mais certeiras até agora, atingindo seu objetivo de traduzir significados e lembranças nos traços próprios da Irlanda, sem abandonar a estética de tirar o fôlego da França.

Alta-Costura: A Beleza Horripilante de Robert Wun 

O designer coreano Robert Wun teve sua estreia na alta-costura no último janeiro, em 2023. Já devidamente aclamado por seu talento, Wun resgata suas inspirações de filmes de terror e as aplica lindamente sobre a sua coleção de alta-costura de 2024.

Com talvez a noiva mais marcante da temporada — lembrando que, na alta-costura, é tradição encerrar o desfile com uma noiva — , a passarela foi invadida por miçangas em vermelho, renda, manequins obsessores, chapéus extravagantes e um terror dramático.

Descrevendo seu processo criativo como algo semelhante à prática de journaling, a coleção de Wun compartilha o backstage das influências dos filmes de terror sobre seu fluxo de pensamento. Lembrando um pouco do histórico Schiaparelliano, o surrealismo horripilante dos tons de preto, vermelho, azul, branco e dourado criam uma fusão que é, ao mesmo tempo, assombrada e lírica.

semana de alta-costura 2024
Foto: Montagem/ Divulgação.

Tal semelhança ainda pode ser encontrada nas silhuetas que contam histórias únicas com seus ângulos ariscos, enigmáticos e extravagantes, além de gotas de chuvas em casacos, chapéus com cérebros para fora e óculos que lembram máscaras feitas com as mãos.

A coleção de 2024 de Robert Wun, além de dramática, também é uma retrospectiva dos dez anos de criação da marca. Enquanto relembra silhuetas, cada peça apresenta uma confiança recém-nascida que só pode ser alcançada com tempo e maturidade conquistadas pelo talento do artista.

Alta-Costura: O retorno da Mágica a Passarela

Existia um mundo, antes de nos rendermos aos trapos do contemporâneo sóbrio e minimalista, onde a moda servia como um epicentro de tudo o que é sentimental — arquitetura, arte, teatro, música e movimento.

Mas na última quinta-feira (25/01), a coleção de Maison Margiela, intitulada ‘’Artisanal’’, provocou o enigmatismo que a arte — e somente a arte — , tem o poder de provocar.

Arquétipos franceses de séculos passados, bonecas de porcelana, cortesãs curvilíneas, silhuetas — silhuetas de verdade!— , personagens, drama, som, luz, textura, cores, emoção e história construíram o desfile que encerrou a semana de Alta-Costura de 2024.

Provando que continua sendo tão relevante quanto possível, John Galliano resgata um formato de apresentação de roupas que se perdeu no passado mais rico da história da moda.

Nas entranhas de Paris, o mundo da alta-costura é construído pelas fotos noturnas de Paris nos anos 1920 e 30, do fotógrafo e cineasta Brassai. Sempre um contador de histórias, John Galliano faz do ‘’storytelling’’ a arma com o potencial que ela sempre teve capacidade de ser, criando narrativas que levam o público a sentir beleza e magia.

Para a coleção, Galliano explora o ritual do vestir e associa esse processo ao processo criativo da construção de uma obra de arte.

coleção John Galliano
Foto: Montagem/ Divulgação.

Sob a luz da primeira lua cheia do ano, em uma passarela composta por mesas de bilhar, cadeiras quebradas e mesas de bar que tomam espaço embaixo da Ponte Alexandre III, em Paris, os modelos caminham de forma quebradiça e ébria, exalando teatralidade em gestos, feições e andares.

Percebemos a transparência em vestidos aquarelados ou camadas de tule tingidos que lembram manchas de óleo, gerando um contraste harmônico com outras peças que parecem mais sólidas e mundanas.

Calças, camisas e casacos de tweed são feitos de camadas de feltro e lã estampada, enquanto sapatos de salto são cobertos por meia-calças transparentes e nós temos gerações e gerações de recortes, texturas, matéria e modelagem em cada peça apresentada.

A silhueta dos modelos é o que entrega ainda mais vida para o show de Galliano, buscando referências na Belle Époque e arrastando para a passarela os detestados quadris exagerados em roupas apertadas ao mesmo tempo em que exalta as cinturas masculinas esmagadas pelos corsets.

Em outro aspecto do desfile, a beleza foi um dos pontos mais altos de todo o show. Há muito tempo não encontrávamos algo tão único nos rostos dos modelos quanto a última criação da maquiadora Pat McGrath: pálpebras cobertas por sombras coloridas até as sobrancelhas desenhadas por lápis, blush arredondados em tons de rosa amarelo, lábios em formato de coração e, principalmente, uma camada de algum ingrediente secreto não revelado por McGrath que dá ao rosto um efeito de látex — gerando o aspecto da porcelana que carrega tanto do desfile.

Um evento que entrou para a história por sua magistralidade—não seria exagero dizer que a moda se tornou outra depois de Maison Margiela.

Solidificando o ritual de vestir, tendo o corpo como uma tela, John Galliano apresenta uma história que constrói o exterior expressivo a partir do seu cerne, como uma forma de emoção — Artisanal foi responsável por pintar um retrato das práticas e ocorrências que constroem os personagens que refletem nas roupas.

Galliano resgatou o renascentismo longe de sua definição como um movimento artístico, mas como uma palavra que define a emoção de sentir a arte renascer em algo muito próximo de sua totalidade, depois de um reinado de passarelas brancas e silhuetas nulas.

Um desfile de encerramento que torcemos para não encerrar somente uma semana do calendário da moda, mas a monotonia de um mundo criativo que não vibra a frequência que de seu potencial, convulsionado pelas telas da tecnologia e pela facilidade do inumano.

Como pura mágica, em um estalar de dedos, Maison Margiela encerrou a semana de Alta-Costura com o conto de fadas para adultos que precisam da emoção para acreditar na arte.

Por Thaís Datri, redação Fala!

ARTIGOS RECOMENDADOS