Por Leonardo Leite – Reaviva MACK
O homem é, em virtude de sua autotranscendência, um ser em busca de sentido. No fundo, é dominado por uma vontade de sentido. No entanto, hoje em dia essa vontade encontra-se em larga escala frustrada (…) Quando me perguntam como explicar o advento desse vazio existencial, cuido então de oferecer a seguinte fórmula abreviada: em contraposição ao animal, os instintos não dizem ao homem o que ele tem de fazer e, diferentemente do homem do passado, o homem de hoje não tem mais a tradição que lhe diga o que deve fazer. Não sabendo o que tem e tampouco o que deve fazer, muitas vezes já não sabe mais o que no fundo, quer. Assim, só quer o que os outros fazem- conformismo! Ou só faz o que os outros querem que faça- totalitarismo.
Viktor Frankl
Todos possuem uma cosmovisão, quer estejam conscientes ou não. Todos interpretamos o mundo a partir de elementos ou pressuposições que sustentamos de forma direta ou indireta. Possuímos valores, sentimentos, perspectivas e até mesmo esperanças que se encontram correlacionadas com nossa experiência de vida, nossos hábitos, costumes e relacionamentos sociais desenvolvidos no decorrer do tempo.
Primeiro definamos o que é uma cosmovisão, de modo que possamos desenvolver nossas ideias em termos comuns. Tal termo foi inicialmente usado pelo filósofo Immanuel Kant para definir o uso da razão para a busca do significado do mundo, bem como de nosso propósito dentro dele. Logo em seguida, Friedrich Schelling apresentou uma perspectiva mais ampla da definição de cosmovisão, tratando-a como o anseio do homem de alcançar uma compreensão coesa e abrangente do universo (conjunto de crenças subjacentes que moldam todo o pensamento e ação humanos).
No século XIX, o filósofo Wilhelm Dilthey foi inovador ao incorporar à definição de cosmovisão os sentimentos, as emoções, e as circunstâncias de vida de cada indivíduo, portanto, a cosmovisão seria “um complexo de ideias e sentimentos, abrangendo crenças e convicções sobre a natureza da vida e do mundo, hábitos e tendências baseados naquelas crenças e convicções e um sistema de propósitos, preferências e princípios que governam a ação e dão unidade e sentido à vida”.[1]
Portanto, com tudo o que foi exposto podemos dizer que é possível chegar a uma definição plausível do que é uma cosmovisão – uma estrutura abrangente e fundamentada de crenças e convicções acerca da constituição básica da realidade; englobando não somente a faculdade racional, como também o comprometimento do coração, um aspecto emocional ligado às experiências de vida e história pessoal.
O filósofo holandês Herman Dooyeweerd associou o conceito de cosmovisão ao fenômeno religioso e ao impulso do ser humano em busca de um sentido universal. “Religião é o impulso inato de toda individualidade humana, em busca de uma origem absoluta, verdadeira ou falsa, de toda diversidade de sentido”. João Calvino denominou esse impulso da natureza humana em busca de um propósito como “ semente da religião”, sendo que todo ser humano é necessariamente uma criatura religiosa.
Ao leitor que chegou até aqui e está se perguntando “que raios isso tem a ver com hakuna matata?”, explicamos a seguir. O remake de “O Rei Leão”, em cartaz nos cinemas, traz em sua essência a perspectiva de que todos nós precisamos necessariamente de uma espécie de “esperança constante”, um propósito que ocupe nossas ações e sentimentos; um contentamento diário.
Essa mensagem nos é trazida a partir das vivências dos próprios personagens: de um lado temos a cosmovisão de Mufasa, a perspectiva de que tudo está conectado a uma ordem natural, uma espécie de determinismo dirigido por uma “providência”, enquanto do outro lado temos a perspectiva niilista de Timão e Pumba que procuram restringir a vida a meros prazeres inconsequentes e sem qualquer perspectiva de dever.
Simba, após a morte de seu pai Mufasa, abandonou o reino ao passo que seu tirânico tio consolidava-se como governante deste. Após o encontro com Timão e Pumba, Simba, amedrontado, busca fugir de seu angustiante passado adotando uma postura de vida escapista pautada no hakuna matata, que significa “sem preocupações”, justificado pela frase “quando o mundo dá as costas a você, você dá as costas ao mundo”. Entretanto, a despeito de um estilo de vida hedonista e individualista, as lições de Mufasa ainda acompanham Simba em seu coração e em suas memórias, sendo que, em última instância, ele opta pela cosmovisão pautada no compromisso deontológico para com seu povo e reino.
A decisão de Simba pela ética deontológica e não meramente utilitária reflete o pensamento de Viktor Frankl acerca do ser humano. Segundo Frankl, o homem encontra-se sempre em busca de um sentido, pois apresenta em seu âmago um sentimento de incompletude, um vazio existencial que provoca o tédio e o anseio por algo maior. Contudo esse pensador ressalta que tentar preencher esse vazio infinito com prazeres e sentimentos finitos não passa de um autoengano; ineficaz a longo prazo e, em última instância, perigoso. “O vácuo existencial se manifesta especialmente através do tédio. Muitos casos de depressão, de agressão e vícios têm em seu alicerce o tédio. Há várias máscaras atrás das quais o vácuo existencial se esconde, como o desejo mais primitivo pelo poder, pelo dinheiro e pelo prazer (…)” .
O filósofo alemão Arthur Schopenhauer dizia algo semelhante: “ Sentimos que toda satisfação de nossos desejos advinda do mundo se assemelha à esmola que mantém hoje o mendigo vivo, porém prolonga amanhã a sua fome”. Tais desejos causam tamanha cegueira a ponto de, em nome de nosso próprio bem-estar, egoisticamente desprezarmos o impacto que nossas ações têm às vidas em nossa volta. No filme, a perspectiva hedonista de Timão e Pumba de descompromisso para com a comunidade e para com o próximo é apresentada explicitamente quando afirmam que nossas atitudes devem ser consideradas pela satisfação pessoal e não pelos impactos que provocam no coletivo, pois a vida não passa de “uma insignificante linha de indiferença” e podemos simplesmente fazer o que bem entendermos pois “a sua linha não afeta a linha de mais ninguém”, ditos pelos próprios personagens, que justificam dizendo que, se realmente estivermos todos conectados e afetarmos uns aos outros, o hakuna matata “não seria tão legal”.
Viktor Frankl expõe que a felicidade, enquanto responsabilidade subjetiva, requer compromisso com um propósito, um sentido a ser alcançado, mas não qualquer objetivo. Para este autor, a finalidade a ser alcançada deve ser maior do que nós mesmos, pois o desejo facilmente atingido é tão logo esquecido e desvalorizado. Já dizia a teoria de Lacan que as fantasias precisam ser irrealistas, uma vez que para poder continuar existindo, a vontade humana precisa ter seu objeto eternamente ausente. O que move o ímpeto individual não é a coisa em si, mas sim a fantasia que dela provém. O desejo sustenta fantasias, cria expectativas, sonhos e esperanças de uma felicidade futura. Eis a grande condição trágica do homem, afirmava Pascal. Portanto, viver meramente pela satisfação de objetivos individuais, de prazeres e de desejos próprios nunca irá propiciar a verdadeira felicidade, apenas um autoengano temporário, cujas consequências podem ser prejudiciais ao âmbito psicológico e até mesmo ao corpo político, conforme destacado anteriormente.
A luta de Simba pelo seu reino reflete o compromisso deontológico que temos para com o bem comum e para concretização da liberdade e da justiça; pois é a luta pela virtude que aproxima o homem de seu verdadeiro propósito. Retomando esse pensamento, Jordan Peterson desenvolve seu ponto de vista com excelência e, de certa forma, resume a lição moral de “O Rei Leão” e nos apresenta uma visão de mundo pautada no respeito aos valores éticos de alteridade. Em sua obra “12 Regras Para a Vida”, o pensador afirma:
Como o mundo poderia ser liberto do terrível dilema do conflito, por um lado, e da dissolução psicológica e social, por outro? Eis a resposta: através da elevação e do desenvolvimento do indivíduo e da disposição de cada um para levar o Ser em seus ombros e escolher o caminho do herói. Cada um de nós deve aceitar tanta responsabilidade quanto possível pela vida individual, pela sociedade e pelo mundo. Cada um de nós deve dizer a verdade e corrigir o que está errado e quebrado e recriar o que está velho e desatualizado. É dessa forma que podemos e devemos reduzir o sofrimento que envenena o mundo. É pedir muito. É pedir tudo. Mas a alternativa- o horror da crença autoritária, o caos do estado falido, a angústia existencial e a fraqueza do indivíduo sem propósitos – é claramente pior
O mais interessante na teoria das cosmovisões é que todos os indivíduos com todas as suas crenças, pressuposições e convicções almejam a felicidade, o contentamento que irá amenizar a dor e o sofrimento. Já dizia o pensador Blaise Pascal: “Todos os homens buscam a felicidade. Isso é sem exceção. Seja qual for o meio diferente que eles empregam, todos eles tendem a esse fim. O motivo pelo qual uns vão à guerra, e pelo qual outros fogem dela, é o mesmo desejo em ambos. E ainda assim, após um número tão grande de anos, ninguém sem fé alcançou o ponto para o qual todos olham continuamente”.
Outro ponto eminente a ser observado é que a felicidade não se encontra isolada ao nosso senso individual de satisfação e de realização própria, mas também é necessariamente vinculada ao dever que temos para com a sociedade em uma perspectiva total, isto é, a comunidade construída pelos nossos antepassados e que há de ser preservada para os nossos descendentes.
No filme, tal lição é frisada no momento em que Mufasa busca lecionar Simba, ao se referir às estrelas, sobre o fato de os nossos antepassados estarem zelando por nós a todo momento e da importância de lembrarmos de seus ensinamentos: “Sempre que se sentir sozinho procure lembrar que aqueles reis sempre estarão lá para guiá-lo e eu também estarei”. Mas para isso é necessário recordarmos. Devemos também nos lembrar de que a liberdade e a perspectiva de justiça pautada nos direitos fundamentais foram conquistas; conquistas estas que exigiram sacrifícios e lutas de nossos antepassados; muitas vezes tais esforços foram empreendidos por cristãos, muitos deles mártires, no decorrer da história. Os fiéis ao cristianismo do século XVI que se opunham ao absolutismo monárquico, os chamados monarcômacos franceses, lançaram as bases para o constitucionalismo. Os parlamentares britânicos, que conhecidos pela sua fé em Cristo, foram determinantes na campanha pela abolição do tráfico negreiro mundial.
William Wilberforce, político inglês e pastor reformado, consolidou o fim do tráfico de escravos na Inglaterra. O próprio movimento da Resistência Alemã contra o nazismo foi fundado inicialmente por cristãos, dentre eles Claus Von Stauffenberg e Dietrich Bonhoeffer, que se sacrificaram tendo em vista o Bem comum e uma Verdade objetiva. Não obstante os exemplos de sacrifícios e lutas pela liberdade e pelo ideal transcendente, as maiores obras jurídicas que iniciaram a construção propriamente dita dos direitos humanos e do constitucionalismo foram desenvolvidas por cristãos, como Samuel Pufendorf, Johannes Althusius, John Locke e dentre outros.
Portanto, qual é a cosmovisão que preenche de forma genuína e autêntica o vazio do homem e lhe dá propósito e sentido para lutar pelo ideal da justiça e da verdade, tal como fizeram nossos antepassados? C. S. Lewis expôs sua resposta da seguinte forma: “Um bebê sente fome: bem, existe o alimento. Um patinho gosta de nadar: existe a água. O homem sente desejo sexual: existe o sexo. Se descubro em mim desejos que nenhuma experiência deste mundo pode satisfazer, a explicação mais provável é que fui criado para um outro mundo.”
De modo semelhante, Agostinho afirma que somente uma substância infinita pode preencher o vazio infinito do homem, e esse Ser Transcendente é Deus, criador dos céus e da Terra, soberano sobre todas as coisas. “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti”. Deus deseja o Bem e seu caráter reflete a justiça e a misericórdia de que precisamos para enfrentar o sofrimento diário e encontrar um sentido em meio ao caos do mundo. “O sofrimento de certo modo deixa de ser sofrimento no instante em que encontra um sentido, como o sentido do sacrifício”. Apesar do mundo tentar nos explorar, expondo nossas angústias e nossa culpa, tal como fazia Scar para com Simba; apesar do maligno tentar nos desanimar em face dos problemas e nos apresentar uma perspectiva escapista de fuga, “ Fuja Simba e nunca mais volte”, devemos nos lembrar de quem somos realmente e que Deus, enquanto Pai, nos consola e nos concede a graça para que possamos perseverar. Na obra Os Miseráveis, Victor Hugo escreve que “ A suprema felicidade da vida é a convicção de que somos amados por aquilo que somos, ou melhor, apesar do que somos.”
Scar é um vilão arquetípico, uma representação do mal e de seus instrumentos para provocar a desordem e a injustiça. Ele se vale de sua inteligência para promover nossa ruína, explorando nossos pontos fracos e tristezas mais profundas, nos acusando constantemente e usando a nossa própria culpa para nos afastar mais ainda de Deus. Devemos lembrar de que o mundo irá fazer de tudo para que nos afastemos de nossos princípios e valores; mas também é um consolo saber que o Pai estará disposto a nos acolher através do sacrifício de Cristo. “No mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, pois eu venci o mundo”, afirma Cristo, o redentor. Talvez uma das cenas mais marcantes de “O Rei Leão” se encontra no diálogo de Simba com o espírito de Mufasa nas nuvens. Simba se expõe e afirma que se sente incapaz para lutar; mas Mufasa o acolhe e diz: “Eu nunca te deixei nem nunca te abandonarei (…) Nunca se esqueça de quem você é.” A lembrança de que o Senhor Deus é o Sumo Bem e de que somos seus filhos criados para glorificá-lo é certamente o maior contentamento para enfrentarmos o mundo e descansarmos na felicidade eterna. Como afirma João Calvino: “A regra que devemos observar, quando estamos em angústia e sofrimento, é esta: que busquemos conforto e alívio só na providência de Deus; porque em meio às nossas agitações, apertos e preocupações devemos encher-nos da certeza de que sua função peculiar consiste em prover alívio ao miserável e aflito (…) sempre podemos recorrer a Deus e obter sua defesa para a causa justa”.
Portanto, tendo em vista as nossas aflições e o nosso constante desejo de fugir de todas as nossas responsabilidades e princípios morais para que possamos encontrar um efêmero bem-estar, mais do que nunca devemos nos recordar de todos que sacrificaram todo o seu conforto e segurança por Cristo e pela perpetuação da cosmovisão cristã. O mártir Policarpo, condenado por não renunciar a Cristo, antes mesmo de morrer pronunciou: “Durante oitenta e seis anos tenho servido a Jesus e ele nunca foi injusto comigo. Como, então, poderia eu amaldiçoar meu Rei e Salvador? Deixe-me como estou. Aquele que me dá forças para suportar o fogo, também me dará para ficar imóvel na fogueira sem que precisem me amarrar”. Que a tradição e a graça que nos foi transmitida com imenso sacrifício pelos nossos antepassados não se percam por nossa tamanha e confortável negligência, que a nossa arrogante irresponsabilidade não se sobreponha a todo o amor de quem sacrificou suas vidas por nós, pois aos deixarmos as suas memórias se perderem, perderemos também a nós mesmos e nos sobrará apenas a vergonha e o esquecimento de sermos quem não prezou pelo passado e abandonou o futuro. Que não sejamos recordados pelo nosso esquecimento, mas sim por quem se lembrará de quem somos e, assim como quem Simba representa, não abandonaremos quem há de vir.
[1] H.A. Hodges, Wilhelm Dilthey: an introduction (New York: Oxford University Press, 1945)
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