No decorrer da história, as classificações raciais no Brasil sofreram diversas mudanças. Por volta do século XV, a Europa era considerada o centro do mundo – em uma visão de 3 continentes, agrupando também África e América. As relações econômicas eram baseadas no trabalho escravo. O africano escravizado era um objeto, uma máquina de trabalho. Ao mesmo tempo, um produto mercantil de grande valor.
Posteriormente, com a abolição da escravatura, em 1888, o negro torna-se livre no Brasil. Porém, é marginalizado por diversos setores da sociedade, inclusive o Estado. Iniciou-se, então, um projeto de miscigenação, cujo objetivo era o extermínio gradativo da população negra. O processo ocorreu através do estupro de mulheres negras e indígenas – medida considerada civilizatória, na época.
No primeiro censo demográfico nacional, em 1872, as categorias eram branco, preto, caboclo e pardo – o pardo era o que sobrava. Depois, pardo foi substituído por mestiço, sendo retirado e renomeado diversas vezes.
Em 1940, o pardo volta a ser uma categoria residual, onde também se incluíam indígenas. Também neste ano, o censo passa a adotar a categoria amarela, que se refere às pessoas de origem asiática. Apenas em 1991, o indígena foi incluído como categoria individual. Em 1920 e 1970, o censo não teve a definição raça ou cor.
Mudanças nas classificações de raça nos censos demográficos nacionais. Infográfico produzido por Higor Vieira. Fonte: IBGE
A regra da Gota
Nas experiências norte-americanas e sul-africanas, a raça de um indivíduo é definida pela ascendência. Uma única gota de sangue negro é mais que o suficiente para que o sujeito carregue, em si, todos os marcadores da negritude, anulando qualquer possibilidade de ser lido como branco. Filhas de negras são negras.
Um exemplo dessa classificação é o caso da atriz Meghan Markle. Ao tornar-se noiva do príncipe Harry, Meghan reacendeu o permanente debate sobre identidade racial. Filha de mãe negra e pai branco, ela se identifica como birracial, mas poderia se declarar negra, se assim preferisse.
A imprensa e os cidadãos britânicos a comparam a um macaco, sendo extremamente racistas em suas caricaturas. Porém, aqui no Brasil, muitas pessoas não conseguem entender como uma mulher de traços finos e pele clara pode ser lida como negra.
Isso ocorre porque, no Brasil, o racismo se deu de maneira distinta, resultado da política de estado eugenista que buscava o embranquecimento da população.
Não é a árvore genealógica que define se uma pessoa será excluída, mas sim, seus traços fenotípicos. A pigmentação da pele costuma ser considerada o principal fator racial no país. Marcada pelo mito da democracia racial, a população negra brasileira possui traços de uma identidade racial singular.
Apesar de ter caído em desuso pela comunidade científica, o termo raça ainda está presente no imaginário social, tomando para si um novo significado. O conceito socialmente construído agora se refere ao fenótipo das pessoas.
Enquanto a raça biológica trata a ideia errônea de traços biológicos definitivos, o conceito de raça social é uma categoria usada para se referir a um grupo de pessoas cujas marcas físicas são consideradas socialmente significativas.
A psicóloga Geni Daniela Núñez Longhini é doutoranda no Programa de pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC e explica que “haver um consenso sobre a raça humana biológica não significa o fim das raças sociais. A raça social foi articulada para fazer a violência racista ter um sentido”.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) classifica os brasileiros em quatro raças: Branco, Negro, Amarelo e Indígena. Os negros são subdivididos em Pretos e Pardos. A população indígena possui mais de 200 etnias espalhadas pelo país. “Eu, por exemplo, sou indígena Guarani. Tenho raça e etnia”, explica Geni.
É uma diferença entre a realidade indígena e a realidade negra. A maioria das pessoas negras aqui no Brasil sofrem esse apagamento da identidade étnica. Elas não sabem de qual etnia na África seus antepassados vieram.
Complementa Geni
A privação da identidade
Uma identidade sólida é fundamental para o desenvolvimento humano. O processo é longo e novos aspectos são absorvidos no decorrer dos anos. Questões sobre pertencimento e individualidades são levantadas, mas nem sempre resolvidas.
A identidade racial ou grupal está ligada ao lugar que uma pessoa ocupa na estrutura social. Essa identidade não é uma escolha do sujeito. Ela está relacionadas a uma ideia de raça construída historicamente no país, que está conectada ao fenótipo do sujeito.
Para as mulheres não-brancas, muitas vezes, o que vai definir seu grupo racial socialmente é a sua identificação enquanto sujeito. Isso está relacionado aos seus processos emocionais ou psíquicos. Com as identificações culturais ou relacionais familiares, ou ainda como esta pessoa é lida pela sociedade.
Lia Schumman, do departamento de Psicologia da UFSC, explica que toda identidade é construída e constituída de forma dialógica. Não há como um sujeito se reconhecer de forma positiva se a sociedade em que ele está inserido produz, acerca de seu grupo, estereótipos, preconceitos e discriminações que restringem a possibilidade de ser humano desses sujeitos.
Segundo a psicóloga, a negação de uma identidade racial pode trazer inúmeras consequências. Como o sofrimento, a sensação de um não pertencimento, ou uma necessidade de identificação radical.
A pessoa não-branca cuja identidade racial foi negada pode passar toda a vida em um limbo, um não-lugar, uma não-voz. Ou pode também reivindicar sua negritude ou descendência indígena, através da luta e da militância ativa.
Ainda, conforme a psicóloga, ser não-branca não é algo por si só. É a tomada dos processos ideológicos que compõem e moldam a sociedade, o afeto, o ódio, o trabalho. Ser não-branca é se tornar não-branca. É tomar posse dessa consciência e lutar por ela.
O Não-Lugar
“Existem setores da sociedade que utilizam do colorismo pra dizer quem é negro e quem não é”, conta a historiadora Amanda Koschnik. “O lugar do negro de pele mais clara, convencionalmente chamado de pardo, é um não lugar.”
O colorismo é um conceito que consiste na discriminação pela tonalidade da cor da pele. Também chamado de pigmentocracia, surgiu em 1982, usado pela escritora Alice Walker, no seu livro If the Present Looks Like the Past, What Does the Future Look Like?, traduzido em português para Se o presente se parece com o passado, como será o futuro?.
Muito comum em países que sofreram a colonização europeia e em países pós-escravocratas, o colorismo parte do pressuposto de que quanto mais pigmentada uma pessoa é, mais exclusão e discriminação ela irá sofrer. No Brasil, o conceito estadunidense começou a ser discutido amplamente há pouco tempo. O tema importado se complexificou, devido a um histórico de políticas de embranquecimento e famílias interraciais.
Quando feito sem profundidade, o debate do colorismo afeta negativamente as negras claras ao tirarem sua sensação de pertencimento, muitas vezes conquistada apenas depois de anos presas em um limbo racial. “Ser negra de pele clara é colocado como ser menos negra”, diz Amanda. “No Brasil, se autodeclarar é um ato político. Eu sou uma mulher negra, posso ser lida como parda, morena, mas sou uma mulher negra”.
Luciana Silveira é professora da Educação Quilombola em Floriarianópolis, e integrante do Movimento Negro Unificado há cinco anos. Ela reforça que um debate descuidado sobre o colorismo pode ser prejudicial às negras brasileiras. “Quanto mais a gente adentra na questão, mais a gente fragmenta a luta da negritude”. Luciana afirma que quanto mais sua negritude é mascarada no olhar do outro, mais possibilidades a pessoa pode ter.
É nessas diferenças que deve ter a convergência da luta. A gente precisa promover um embate, para libertação das mentes que foram colonizadas, e aí é para todo mundo. Porque todas nós somos colonizadas, algumas mais e outras menos.
O conceito se tornou muito discutido na Sociologia. Em uma sociedade em que o racismo estrutural ainda predomina, a aparência de uma pessoa pode limitar as suas oportunidades. Porém, houve uma distorção do conceito, como explica a professora Lia, da psicologia.
Uma pessoa de pele mais clara pode ter mais oportunidades no mercado de trabalho, e até mesmo no mercado afetivo. Mas isso é sobre oportunidades, e não sofrimento. Ninguém pode quantificar sofrimento.
Lia explica que essa distorção do conceito ignora a singularidade de cada sujeito, a trajetória particular de cada um. “A forma como o racismo se manifesta tem a ver com onde ele está inserido, e não com sua pele. A gente tem que entender esse processo. Se não, estamos dizendo que é a melanina que faz a pessoa sofrer, e não os processos de dominação. Ninguém sofre pela cor da pele, sofre no encontro com o racista”.
No artigo A cor de Amanda: identificações familiares, mestiçagem e classificações raciais brasileiras, a psicóloga explica que os processos de mestiçagem no Brasil nunca tiveram como objetivo a diversidade racial e étnica, e sim, a extinção do povo negro. “O mestiço nunca foi um fim em si mesmo”, ele é uma herança do período colonial. Uma lembrança constante do projeto de embranquecimento da população brasileira, reforçado pelos ideais europeus do racismo científico, que afirmavam que a raça branca seria a mais civilizada – e as demais, inferiores.
Assim, a miscigenação desqualificava os sujeitos, tornando-os menos capazes. Não foi fácil para o Brasil, com a mistura de tantos povos, formar uma identidade nacional única – que ainda não se formou.
Diferentemente da ideologia racial norte-americana e do regime de apartheid da África, o brasileiro ficou preso ao conceito de mestiçagem. O ideal do branqueamento dificulta tanto uma identificação com a mestiçagem, quanto com a negritude e também com ascendência indígena. Em outros grupos étnicos brasileiros, por exemplo, não há intermediários: as chamadas vermelhas, que são as indígenas, e as amarelas, que são os descendentes de asiáticos.
Apesar dessas populações também passarem por processos de mestiçagem, o pertencimento delas se mantém. Assim, é preciso questionar qual local a mestiça ocupa no Brasil, e como se constitui seu pertencimento racial. Como indicam as pesquisas e discussões recentes, colocar as pardas como menos negra pode ser uma alienação do seu processo identitário.
É importante ressaltar que, no Brasil, o indivíduo só é considerado mestiço quando há fenótipo não-branco, como explica Geni, “O mestiço é sempre racializado no Brasil. Por exemplo, se a família da sua mãe é polonesa e a família do seu pai é sueca, aí você não é mestiço, você é branco. A mestiçagem não se dá quando há vários povos em uma família, e sim quando há um povo não branco”.
Sob diversas realidades raciais, o Brasil foi historicamente ensinado a branquear sua sociedade. A identidade da população é vendida como indefinida, apesar de 53% dessas pessoas se autodeclararem pretas ou pardas, segundo dados do IBGE.
Além disso, a exclusão da descendência indígena mostra fragilidade no conceito de democracia racial, afirmado por Gilberto Freyre. Dentro da própria classificação racial, temos problemáticas. Afinal, todos as pardas são negras?
Índias urbanas
O primeiro uso do termo “pardo” foi para descrever indígenas. O termo estava na carta que Pero Vaz de Caminha enviou a Portugal, um marco na colonização do Brasil. Associar o pardo exclusivamente a pessoas negras pode ser um erro, contribuindo para a invisibilização de muitos indígenas. Significa aderir ao discurso de que eles foram dizimados, como se deixassem de existir no país após o processo de miscigenação. É desconsiderar o fato de que a raça indígena é definida por descendência e ancestralidade, e não pelo fenótipo, como as pessoas negras do Brasil.
Thuane Cambuy é estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria. A paranaense é descendente indígena, mas se autodeclara como parda.
Eu tenho plena consciência de que eu vim de um processo violento. Minha vó era indígena, e foi ‘pega no laço’ pelo homem branco. Eu não me sinto confortável para somar a luta indígena na minha Universidade. Mas eu não tenho privilégio branco.
Relata Thuane Cambuy
A jornalista e educadora Inara Fonseca possui ascendência indígena da etnia Guató. Ela se autodeclara politicamente como mestiça, e no censo oficial como parda.
Tem toda uma política feita para invisibilizar a questão indígena e a gente acaba interiorizando. Durante muito tempo eu interiorizei que não ter passado pela experiência de aldeamento não me dava legitimidade pra me declarar como indígena.
Inara também ressalta como a discussão rasa sobre raça no Brasil muitas vezes se prende ao binarismo branco/preto, e que essa dualidade não é capaz de representar toda a diversidade do país.
Historicamente, por causa dessa política de invisibilização indígena, o pardo vem sendo exclusivamente associado à negritude. Eu uso mestiça para demarcar que minha identidade racial está ligada a minha ancestralidade indígena, e não apenas a fenótipo. Ela não cabe no que se convenciona no pardo, que coloca a negritude como mais visível.
Na sua infância, a questão de raça esteve presente, mas de maneira superficial. “Eu era sempre chamada de indinha, indiazinha. Eu não gostava, mas não entendia o porquê”. Foi quando entrou na graduação em Jornalismo na Universidade Federal do Mato Grosso, em 2006, que passou a repensar mais a construção de sua identidade, ao não se sentir representada pelo Movimento Negro da Universidade.
Apesar da população do estado ser composta boa parte por etnias indígenas, o binarismo branco-preto acabou sendo incorporado nas discussões. “Era uma época em que se havia muita luta pelas cotas raciais. Existia uma pressão muito grande para que as pessoas pardas se declarassem negras. Mas eu sabia que isso era invisibilizar a minha ascendência indígena. Foi um ato político”
A jornalista não sentiu que sua identidade racial foi atacada diretamente. Ela acredita que a pressão é reflexo de um sistema excludente. “Era próprio do sistema racista colonial que ainda existe no Brasil, que dificulta as pessoas terem pertencimento, sejam elas negras ou indígenas. O sistema não quer que você saiba seu lugar no mundo”.
Racismo amarelo
“Eu passei 20 anos da minha vida me vendo como branca, mas sempre sofrendo com preconceitos e estigmas. Faz apenas um ano que eu consegui enxergar o racismo e a xenofobia”. O relato é de Lívia Tokasiki, graduanda em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina. Trata-se de racismo amarelo, preconceito destinado a japoneses, chineses e coreanos.
Descendente de japoneses e okinawas – indígenas do japão -, a estudante relata que os estereótipos racistas estiveram presentes desde a infância. “No sexto ano, eu precisei de aula de reforço em matemática, e eu sentia que não era o que esperavam de mim. Porque tinha a ideia do japonês inteligente, tímido, sério, responsável, que ia bem em matemática”. As afirmações vinham descaradamente em forma de piadas, mas também veladas em elogios, que sempre causaram desconforto.
No início da adolescência, passou a sentir as dores do preterimento reservado às mulheres não-brancas. “Na época dos namoradinhos, as minhas amigas brancas tinham, e eu era sempre deixada de lado. Sentia solidão”.
Lívia também sentiu diferenças no tratamento ao se mudar para o sul do país. “Em São Paulo era mais velado. Aqui eu sou vista como exótica, como rara. Uma vez me deram carona porque falaram que eu era asiática, era tranquila, não seria uma ameaça”.
A minoria modelo
No início de 2020, o medo de uma possível epidemia fez com que a hostilidade contra asiáticos aumentasse por todo o mundo. O novo coronavírus foi descoberto em dezembro de 2019 na China, e vem causando pânico pelo mundo. O vírus pode ter sido transmitido por contato animal-humano, mas até a finalização desta reportagem, não havia confirmação.
No dia 31 de janeiro, no metrô do Rio de Janeiro, uma senhora branca foi filmada exaltada e proferindo várias falas racistas contra negros e asiáticos – em especial chineses. A estudante de Direito, Marie Okabayashi denunciou em suas redes que entre os insultos foi chamada de “chinesa porca”, “nojenta” e acusada de “ficar aí espalhando essa doença para todos nós”.
O caso é um exemplo do quão rápido amarelas podem ir de “minoria modelo” para “o outro, estranho a ser combatido e temido”. O mito da minoria modelo se refere ao estereótipo criado sobre chineses, japoneses e coreanos. “A gente é visto como modelo. O que já mudou com o coronavírus. Isso mostra como o privilégio que nos foi concebido pelos brancos, pode ser facilmente retirado”, ressalta Lívia.
No contexto brasileiro, os amarelos enfrentam individualmente, agressões cotidianas. Mas, estruturalmente, o racismo amarelo se dá de maneira diferente do que ocorre com os negros. Amarelos não são perseguidos pela polícia, por exemplo. E não precisam temer que seu currículo seja preterido em relação ao de uma pessoa branca com menor capacitação.
Entretanto, o racismo amarelo é utilizado muitas vezes como argumento a favor do mito da democracia racial brasileira. Os asiáticos são colocados como uma minoria esforçada, estudiosa, e que consegue ascensão econômica e social sem assistencialismo. Assim, o negro fica do outro lado, como oposição. Isso têm marcas de determinismo biológico, racial, e ainda vem sendo usado em pleno século XXI.
É uma forma de diminuir a luta anti racista. Os negros vieram para o Brasil em situação de escravização, e os amarelos em situação de imigração. Os brancos utilizaram disso para dizer que conseguimos ascender, e eles não. Toda essa história foi pensada. É uma tática nas relações de poder entre as raças.
Denuncia Lívia
Passabilidade e privilégio
“Eu nunca quis roubar o protagonismo de ninguém, eu sei dos meus privilégios”. A frase é de Iraci Falavina, graduanda em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina.
A estudante possui traços fenotípicos negros, como o cabelo crespo, o nariz e os lábios. Porém, costuma ser chamada de “Afrobege”, pelo tom da sua pele. Sua identidade racial já foi questionada e negada, deixando Iraci insegura sobre sua própria identidade.
“Já foi negado tanto por pessoas brancas quanto pelas negras. Mas quando é negada pelas negras, dói mais”. Iraci, assim como muitas brasileiras, vem de uma relação inter-racial. Porém, foi criada pela parte negra da família. Assim, só se deparou com questionamentos raciais mais complexos quando entrou no ensino médio.
As pessoas começaram a me chamar de apelidos que usavam para se referir às pessoas negras. Foi então que a ficha caiu. Para a minha mãe, eu era a branquinha entre os filhos negros. Não foi assim na escola.
A estudante de Jornalismo relata que se sente sempre receosa ao participar de debates raciais, como se alguém fosse acusá-la de ser indigna daqueles espaços. “Eu não to tentando roubar o lugar de ninguém, eu tô tentando achar o meu lugar. To tentando me estabelecer”.
Assim como Iraci, muitas pessoas têm receio de se autodeclararem negras. Elas se identificam com a raça, mas usam como medida a quantidade de racismo que sofreram. Essa percepção tem sido reforçada por muitos movimentos negros brasileiros: ser negro é quem sofre racismo. Negro é quem sofre, branco é quem tem privilégio. E quem se encontra nesse meio termo? Já sofreu discriminação, mas também percebe e tem consciência de seus privilégios, sendo negra mais clara.
Essa identificação racial construída através do sofrimento pode trazer inúmeras consequências para aqueles considerados pardos, já que, historicamente, eles vêm sendo alienados de sua identidade. O olhar externo acaba sendo uma sentença para que se defina alguém racialmente.
“Minha identidade foi questionada já na minha família, o que gerou bastante confusão”, relembra a historiadora Amanda.
Existem diferenças sim de como o racismo se manifesta, depende muito de quão escura sua pele é. As situações de racismo que eu sofro podem não ser as mesmas que outras pessoas de pele mais escura sofrem. Isso não significa que é mais brando, mais fácil de lidar, que é menos doloroso. Às vezes, é até mais difícil, pra gente identificar, pra perceber que várias situações que passamos, era racismo. Nós não sofremos menos racismo, sofremos racismo de formas diferentes.
O experimento Pantone
Em 2012, a design carioca Angélica Dass, de 33 anos, decidiu que investigaria mais a fundo o tom da pele humana. Em Madri, usou a ideia como objeto de pesquisa de seu mestrado em fotografia artística. A ideia se concretizou na pesquisa Humanæ, onde fotografou pessoas de tons de pele diversos para descobrir as correspondências exatas das cores no padrão Pantone – índice de cores bastante utilizado no mundo do design e da moda.
A inspiração veio de sua própria família inter-racial. Angélica é negra, neta de descendente de índios e negros, e filha de pai negro que foi adotado por família branca. Apesar do receio de ter problemas com a marca Pantone, pois não havia pedido permissão, Angélica não teve complicações, e continua o projeto até hoje. Já foram mais de 3.000 pessoas fotografadas.
Para saber a cor da pessoa, ela seleciona um quadrado de 11 por 11 pixels no nariz da modelo. Então busca uma correspondente Pantone. No espaço do fundo branco, ela aplica a cor Pantone da pele e, numa outra faixa branca, o código Pantone.
Com algumas fotos tiradas pela designer, o debate sobre colorismo na internet se deparou com uma questão. No exemplo a seguir, há três fotos de três mulheres diferentes, com o mesmo tom de pele.
Apesar da coloração ser a mesma, os traços fenotípicos é que definem a raça das modelos. A mulher de cabelo crespo, nariz largo e lábios grossos, é negra, enquanto as demais são brancas.
Ser negro não se trata apenas de melanina, há toda uma carga de traços negróides. Porém, como indicam estudos e discussões sobre o tema, é importante ressaltar a importância de pensar a construção histórica da raça em cada lugar – a mulher de cabelos castanhos é branca no Brasil, mas seria lida como latina nos países norte-americanos.
Um debate que gera silêncio
O debate do colorismo na internet se mantém até hoje, trazendo contribuições para compreender o racismo estrutural que molda a sociedade. Porém, como explicou a psicóloga Lia, o colorismo de fato não é capaz de representar toda a questão racial brasileira, pois simplifica as singularidades dos processos de identidade racial – coletivos e individuais.
O objetivo da discussão sobre os prejuízos de um debate sobre o colorismo – como têm enfatizado muitos que discutem o tema – não é dar passe livre para as fraudes que ocorrem em concursos públicos e vestibulares. E sim, ampliar a discussão para como essas questões de identificação racial foram construídas historicamente e impactam a identidade racial de cada pessoa não-branca.
A jornalista Juliana Gonçalvez, no site Geledés, traz um convite à reflexão sobre a aplicação da palavra “privilégio” para se referir às pessoas negras de pele mais clara.
Como vamos usar para uma pessoa negra, marcada pelo racismo estrutural a mesma palavra carregada de sentido que usamos para falar da branquitude? Ou seja, muitas vezes lemos como privilégio quando uma pessoa negra acessa o que é, na verdade, um direito.
Como mostra a história de Amanda e Iraci, debater colorismo se torna um ato doloroso, porque fala das diferenças entre pessoas negras. Ele fala de pessoas negras sob o olhar colonizado e colonizador da branquitude. As experiências mostram que outras questões interferem, como classe, território, gênero, escolarização e vivência.
O problema no atual debate do colorismo é que ele gera constrangimento, insegurança e mais dores. O colorismo é um debate que gera silêncio.
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Por Gabriele de Oliveira da Silva – Fala! UFSC