Participante que representou o Rio de Janeiro conta de que forma a doença afetou o andamento do Programa; as atividades ocorriam no IFG, na capital de Goiás
Nos últimos dias, o mundo passou a ter que conviver com um inimigo invisível, mas devastador: o novo coronavírus. E com o rápido avanço da pandemia, medidas, como o isolamento social, precisaram ser tomadas na tentativa de conter a disseminação da doença. Entretanto, isso impactou negativamente diversos setores da sociedade, como a educação e a ciência.
E foi exatamente o que aconteceu em Goiânia. Com previsão de durar 10 semanas, o projeto Lapassion (Latin America Practices and Soft Skills for an Innovation Oriented Network, em português Práticas e habilidades sociais da América Latina para uma rede orientada para a inovação), de intercâmbio internacional, durou apenas uma semana e fez com que os participantes precisassem rever suas metas pessoais.
Por conta das medidas de isolamento tomadas por alguns estados, como Goiás, estudantes de diversas partes do mundo tiveram que abandonar, momentaneamente, o sonho de produzir ciência e estar em contato com diversas culturas.
A estudante de Gestão Ambiental do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), Larissa Aragão, foi selecionada para representar o Rio de Janeiro no projeto, que contava com participantes da América Latina e da Europa. A moradora de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, que estava radiante com a missão, contou que, com a repentina interrupção do projeto, assim como seus colegas, se sentiu esgotada emocionalmente.
Todos os nossos planos, tudo que traçamos foi abalado em uma única manhã. Muitos largaram estágio, trabalho, trancaram a faculdade para estar lá, para participar do projeto.
Lamentou a estudante de 21 anos
A forçada decisão de paralisar as atividades foi tomada em março, na segunda-feira (16), e se deu após a notícia de que a rodoviária seria fechada no dia seguinte e os aeroportos, na mesma semana, possivelmente.
Os professores que coordenavam o Lapassion também foram dominados pela sensação de frustração. “O professor disse: ‘Vocês vão ficar isolados em Goiânia! Retorno imediato! Comprem suas passagens'”, destaca a futura Gestora Ambiental.
Para os participantes estrangeiros, o drama foi ainda maior. Muitos quase não conseguiram voltar para seus países de origem e encontraram passagens com valores bem altos.
Foi informação demais para processar em tão pouco tempo. Os estudantes de longe, o início de fechamento de fronteira de alguns países europeus. A incerteza da possibilidade de volta. O sentimento de muitos de que estavam mais seguros aqui [no Brasil] do que onde moravam. A correria pelas passagens caras. Alguns embarcariam no mesmo dia à noite.
Lembrou Larissa
O Projeto Lapassion
O projeto Lapassion integra o programa Erasmus+ Capacity Building Program, da União Européia, e é gerenciado pela Agência Executiva de Educação, Audiovisual e Cultura (EACEA). O programa visa desenvolver estágios multidisciplinares, caracterizados por projetos apresentados pela comunidade ou gerados por ideias inovadoras, para criar protótipos.
De acordo com a Diretoria de Comunicação Social do Instituto Federal de Goiás:
O projeto faz parte do programa de capacitação internacional Erasmus+ Capacity Building Program, da União Européia, gerenciado pela Agência Executiva de Educação, Audiovisual e Cultura (EACEA). Coordenado pelo Instituto Politécnico do Porto (IPP), o projeto conta com a participação de 13 instituições de ensino, sendo: cinco brasileiras (IFG, IFTM, IFSul, IFMA e IFAM); duas chilenas (Pontifícia Universidade Católica do Chile – PUC e Fundação do Instituto Profissional – DUOC); duas uruguaias (Universidade da República de Uruguai – UDELAR e Universidade Técnica de Uruguai – UTEC); duas espanholas (Universidade de Vigo – UVIGO e Universidade de Samalanca – USAL), uma finlandesa (Universidade de Tampere de Ciências Aplicadas – TAMK); e uma portuguesa (IPP), além do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (CONIF) e da Associação Empresarial de Portugal, Câmara de Comércio e Indústria (AEP).
Assim sendo, o Lapassion é um acordo de desenvolvimento de boas práticas que almeja trazer práticas de inovação da União Européia para implementá-las na América Latina. O projeto acontece todo os anos em mais de um lugar do continente e é dividido por regiões. Em 2020, por exemplo, o planejamento era de que as atividades, no Brasil, ocorressem em Goiás, englobando as regiões centro-oeste e sudeste, Manaus, representando Norte e Nordeste, e Pelotas, região Sul.
Contudo, devido ao avanço do coronavírus mundialmente, a edição de Goiás foi interrompida; a de Manaus, que estava em andamento quando Goiás iniciou as atividades, foi suspensa por 2 semanas, após a capital decretar quarentena, enquanto que a do Sul foi suspensa sem data prevista para iniciar. Futuramente, haveria, também, uma edição no Chile, porém, ainda deixa dúvidas quanto à sua realização.
O projeto é voltado para estudantes da Graduação que têm vontade de mudar cenários, transformar realidades e aplicar conhecimentos práticos no campo da pesquisa e da inovação.
Na primeira semana do programa, os participantes são divididos em grupos, geralmente, de cinco a seis pessoas e cada equipe recebe um desafio relacionado à temática da edição. Na última semana do projeto, os resultados são apresentados às partes proponentes – que variam conforme o desafio proposto – podendo ser empresários, representantes de órgãos do governo, como a secretaria de trânsito, deputados federais e grandes nomes da Instituição anfitriã.
Neste ano, o tema é voltado para a sustentabilidade e energia sustentável. O desafio do grupo de Larissa é implementar energia sustentável e sustentabilidade ambiental em uma fazenda de porcos e codornas em Goiás. Importante enfatizar que o Lapassion não se trata de uma competição, mas de trabalhar em equipe ajudar um ao outro, simbolizando, portanto, que o sucesso não é obtido individualmente, mas na coletividade.
Larissa Aragão contou em detalhes como estava o clima entre os participantes após a divulgação de que seria preciso suspender o projeto. Confira na íntegra a entrevista*:
*Observação: seguindo as recomendações das autoridades de saúde, de isolamento social, a entrevista foi realizada pela internet.
Entrevista
Ana Paula Jaume: Como foi a viagem de ida para Goiânia? Notou algum comportamento atípico das pessoas?
Larissa Aragão: Na viagem de ida algumas pessoas usavam máscaras no aeroporto, mas era possível contar uma ou duas que faziam isso. Tudo corria normalmente, crianças, idosos viajando.
APJ: Durante o projeto vocês conversavam entre si sobre?
LA: Na primeira semana a gente praticamente não ouviu ou falou essa palavra. O contato que nós tínhamos com essa situação era em casa através do jornal ou falando com parentes que estavam na região mais afetada. Apenas na segunda-feira, da segunda semana, o problema pareceu se tornar evidente. As aulas no IFG e outras instituições foram suspensas. Ficamos sozinhos num campus enorme, 25 estudantes. Nos assustava, mas nos dava força a ideia de que estávamos participando de algo grande, que não ia parar mesmo que tudo ao redor parasse.
APJ: Você via algo de diferente quando saía às ruas? Alguma movimentação anormal?
LA: A vida seguia normalmente em Goiânia, não ouvia nada sobre isso e também não impactava a vida dos moradores. Frequentamos feiras livres e o maior polo de moda do país, nenhum vestígio do assunto. Parecia que o coronavírus era algo que só acontecia lá fora, que ia parar em São Paulo, que estávamos seguros em Goiânia.”
APJ: Os participantes se mostravam preocupados com os acontecimentos/noticiários?
LA: Nos assustava, mas nos dava força a ideia de que estávamos participando de algo grande, que não ia parar mesmo que tudo ao redor parasse. Os estudantes da Finlândia receberam recomendação para voltar, a situação nos outros países piorava, novos casos em Goiânia, a ficha caiu! E surgiu a preocupação: “o que aconteceria com o projeto?”.
APJ: Qual era a situação nos países dos seus colegas do projeto?
LA: Na capital do Chile, em Santiago, houve um número crescente de casos. Na última segunda-feira, o país entrou no estágio 4 da epidemia. Em Portugal, os casos dispararam e algumas cidades entraram em quarentena. Na Finlândia, a mesma coisa, até que decidiram limitar as viagens dentro do país e os estudantes receberam, na segunda-feira, recomendação de retornar ao país (mas não queriam fazê-lo).
APJ: E o que você sentiu quando recebeu esta notícia?
LA: Ao final do dia na segunda-feira (16), a situação já parecia estar insustentável, nós começamos a ficar ansiosos, aflitos, desanimados para trabalhar naquele dia. Será que estávamos trabalhando em algo que nunca poderíamos terminar? Mas nenhum de nós imaginou que alguma decisão seria tomada imediatamente. Nesse mesmo dia, eu fui ao mercado com uma amiga e fizemos compras para pelo menos 2 semanas à frente…na terça-feira seria um dia especial para nós, nós pintaríamos a sala em que passávamos o dia trabalhando. Mas quando chegamos, não tinha professora de arte. Não tinha tinta. Não tinha professor nenhum. Só um recado: os organizadores estavam em reunião para decidir o destino do projeto. E a partir daí a ansiedade e o coração apertado. No final da reunião, uma professora muito querida que estava nos acompanhando, apareceu com uma expressão muito triste, fomos para sala num clima de tensão. E então, o anúncio, a decisão, o cenário, o caos… Depois de longas conversas com superiores, de tentativas de viabilizar a continuidade do projeto, a decisão final: seria insustentável continuar. A rodoviária de Goiânia fecharia no dia seguinte (17), o aeroporto estava com previsão para fechar na mesma semana. O professor organizador em lágrimas, por uma ideia que lutou para que se tornasse realidade por mais de 2 anos. Sabemos que ações educativas sempre passam por muitas barreiras. 2 anos de luta, de conquista de aprovação, verba, da mobilização de mais de 20 estudantes, o projeto que marcaria uma vida, um calendário cuidadosamente preparado para os próximos dois meses, tudo parecia ter ido por água abaixo. Uma professora não conseguia nem falar de tão abalada…enquanto isso uma equipe trabalhava para disponibilizar uma plataforma on-line para que conseguíssemos trabalhar. 4 países, 4 fuso-horários. Recebemos um treinamento curto e improvisado de como utilizar essa plataforma on-line.
APJ: Como estavam os aeroportos na volta para o Rio de Janeiro?
LA: Apenas 2 semanas depois eu estava retornando e tudo tinha virado de cabeça para baixo. O aeroporto de Goiânia, que recebe apenas poucos vôos nacionais, mas é sempre movimentado, estava deserto, parecia um aeroporto fantasma. Funcionários reduzidos, voos cancelados por falta de passageiros. E todos que ainda estavam lá estavam unidos numa mesma corrida: a volta para casa. Era possível ouvir as pessoas conversando, como tiveram que antecipar uma volta marcada para semanas depois, a tão planejada visita a família encurtada. Quase todas as pessoas usavam máscaras e até mesmos luvas. Lembro de uma criança com as luvas maiores que as mãozinhas. Nos outros dois aeroportos, por se tratarem de aeroportos maiores o movimento era maior, mas igualmente frenético, as ligações se repetiam “estou voltando pra casa”. Todos de máscara, bebês, adultos, idosos. Parecíamos estar em um avião com ar “impróprio”, pois todos usavam máscaras.
APJ: Conta como foi a experiência de fazer parte desse projeto, o que você vai levar com você para sempre, o que aprendeu com tudo isso que você viveu?
LA: Infelizmente eu só passei 6 dias no projeto, mas parece que aprendi e cresci por muito mais dias. Eu nunca tive a oportunidade de ter contato com tantas culturas, e essa foi a melhor parte! Cada um compartilhava um pouco de onde veio, seus costumes, seus pontos de vista…nós ríamos, vibrávamos e nos encantávamos com cada diferença. Éramos tão diferentes, mas todos unidos num mesmo objetivo. E em pouco tempo criamos laços. As conversas eram reais, celulares ficavam de lado. As ideias sobre os projetos em que estávamos trabalhando fluíam de forma natural e tranquila. Academicamente, pela primeira vez, eu pude ver uma concretização do que só ouvia dizer até então, a ponte entre universidade, empresas e inovação. Nossos desafios eram propostos por empresas e órgãos reais, que acreditavam na nossa capacidade de construir algo grande. Ter uma reunião com 3 donos de empresas consagradas, de tecnologia internacional e vê-los anotando nossas ideias e propostas, não tem preço.
APJ: O que você vai levar dessa experiência?
LA: Boa parte do seu propósito não poderá ser recuperado. A troca que tínhamos com a convivência ficou reduzida ao contato virtual, e agora não podemos “colocar a mão na massa” como antes, levantar, explicar um ideia, desenhá-la, falar com empolgação para o resto do grupo…de forma geral, esse tem sido nosso sentimento. É difícil conciliar 4 fuso-horários, não perder a qualidade de nossas ideias, ter comprometimento com uma rotina, manter a mente focada em meio ao que estamos enfrentando…além disso, não vamos poder entregar um resultado com a mesma qualidade que se ainda estivéssemos lá. Por exemplo, meu trabalho é desenvolver o projeto para energia sustentável em uma fazenda, eu ia visitar a fazenda, conversar com os donos, ouvir suas expectativas, ver tudo na prática, hoje tudo isso ficou comprometido. Tenho certeza que os laços ficariam mais fortes, as experiências seriam mais intensas, as memórias dos lugares que iríamos visitar seriam inesquecíveis.
A edição de 2020 do projeto Lapassion seguirá não mais presencialmente, mas à distância. Larissa lamenta que boa parte do propósito do programa será perdido, como as trocas entre pessoas de diferentes países e o fato de “colocar a mão na massa”, desenhar uma ideia e explicá-la aos diretores de grandes empresas. Foi disponibilizada uma plataforma on-line para que a equipe conseguisse trabalhar pelas 9 semanas restantes.
Ainda citando as dificuldades em continuar trabalhando à distância (e conciliar 4 fuso-horários), a estudante ressalta que a qualidade das atividades também fica abalada
Não vamos poder entregar um resultado com a mesma qualidade. Meu trabalho é desenvolver o projeto para energia sustentável em uma fazenda, eu ia visitá-la, conversar com os donos, ouvir suas expectativas, ver tudo na prática; hoje tudo isso ficou comprometido.
A graduanda de Gestão Ambiental, do Instituto Federal do Rio de Janeiro, no Maracanã, é um bom exemplo de jovem que sonha em fazer a diferença no cenário científico global e inovar e luta por um mundo melhor ainda que estejamos em tempos de crise. Com isso, ela mostrou que a produção científica não tira férias e, por isso, a necessidade de os governos investirem fortemente na área, como ocorre pelo mundo afora.
Larissa encerra seu relato com um tom nostálgico e de agradecimento: “o projeto foi pensado para ser presencial, um intercâmbio, 2 meses e meio de 8h de projeto por dia. Mas, agora, nos resta dar o nosso melhor, aqui de longe. De qualquer forma, já somos uma edição inesquecível do projeto. E continuo grata pela oportunidade!”
Ficou interessado no projeto? Você pode ficar ainda mais por dentro das atividades através dos canais de comunicação abaixo:
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Por Ana Paula Jaume – Fala! UFRJ