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As teorias oníricas daqueles que só sonham consigo mesmo e daqueles que sonham longe

Há 4000 anos, o primeiro dicionário de sonhos criado pelos egípcios prova que os sonhos sempre foram assuntos capazes de despertar a curiosidade no homem (Livro dos sonhos). Rodeado de mistérios, receberem diversas interpretações ao longo do tempo. Os próprios egípcios, bem como diversos outros povos, acreditavam que eles eram presságios, e aí entrava o dicionário, como uma forma de auxiliar o sonhador a, no meio da confusão onírica, encontrar o que o futuro lhes reservava.

Ainda hoje, buscamos significados para o que sonhamos e continuamos a ter diferentes respostas para as mesmas perguntas, e algumas que ainda não possuem qualquer solução.

Freud e Jung

Freud, como um bom intelectual ocidental, levou a herança grega adiante. Foi Platão quem afirmou que sonhos refletiam desejos secretos. E Aristóteles sugeriu que tais fenômenos eram metafóricos e careciam de um bom intérprete para entender seus símbolos. Freud, em sua teoria do subconsciente e sonhos, une a ideia dos dois filósofos.

Em 1900, o pai da psicanálise publicou o livro A Interpretação dos Sonhos (Die Treumedeutung), e conta a psicanalista Shirley Amaral que ele alegou o manuscrito ser a revolução científica do século na área de estudos da mente humana. Nele, Freud desvincula os sonhos de uma temática religiosa, para a qual eram “experiências premonitórias ou supersticiosas”. Segundo ele, sonhos são desejos inconscientes, aqueles pensamentos que seriam insuportáveis durante a vigília e aproveitam o torpor da consciência sobre o travesseiro para “emergir” e serem, de certo modo, concretizados.

Essas vontades, mesmo durante o sono, não poderiam se revelar em sua total nitidez e, por conta disso, aparecem confusamente sob forma de símbolos. Nesse sentido, os próprios pesadelos são uma ferramenta para acordar o sujeito, quando esse é submetido a conteúdos oníricos com símbolos insuficientes para ser apresentados ao sonhador. E a natureza sexual dos sonhos, implícita ou não, ganha enfoque especial: As neuroses – conflitos psíquicos de impulsos não realizados – teriam sua origem em traumas sexuais e  seriam “manifestados de forma simbólica através dos sonhos”.

“Inicialmente, Freud propôs uma simbologia universal”, conta Shirley. Assim, poderia se dizer que as escadas de todos os sonhos significariam o ato sexual; rei e rainha representam o pai e a mãe; todo tipo de arma, o órgão sexual masculino, dentre vários outros símbolos. Com o tempo, ele passa a rejeitar essa ideia e considera que uma mesma imagem terá uma associação diferente para cada pessoa, tendo em vista que os indivíduos apresentam experiências de vida distintas entre si.

Isso torna a tarefa da interpretação um tanto mais complicada, por não existir nada em absoluto, nenhum dicionário que possa ser consultado. No entanto, Freud não nos abandona à própria sorte e pensa em algum modo de analisá-los. Para conseguir alcançar o subconsciente por interpretação de sonhos, torna-se necessário levar em consideração o conteúdo manifesto, que seria o relato ou a descrição verbal, e o conteúdo latente, ou seja, pensamento e desejos que “não aparecem claramente para a consciência”. O analista, juntamente com o paciente, deve partir das associações individuais do sonhador para desvendar o conteúdo latente, que guarda o verdadeiro sentido onírico.

Freud não foi o único pioneiro da psicanálise. Carl Gustav Jung e ele costumavam trabalhar juntos, até que suas divergentes ideias a respeito da “energia psíquica”, como citou a psicóloga clínica Luiza Assumpção, os afastou para que seguissem cada qual com sua vertente.

Na primeira fileira, Freud ocupa a esquerda e Jung, a direita (Foto: Wikipedia)

Enquanto Freud era causalista, isto é, acreditava que os sonhos vêm de experiências anteriores, desejos e traumas; Jung baseava-se nas causas juntamente com a finalidade, cujas imagens simbólicas dariam acesso não só ao passado, mas também ao futuro.

Sob esse olhar, Jung traz um novo conceito: Os sonhos antecipatórios. Eles podem nos dar alguma antecipação futura, mas não são nenhuma espécie de presságio, apenas coincidem com o resultado final. Isso porque o inconsciente, na visão junguiana, possui uma abundância de dados muito maior do que o consciente, inclusive ele “pode expressar imagens nunca antes apreendidas pela consciência do sonhador”, como afirma Luiza. Por ser o inconsciente “infinito e coletivo”, nele estão todas as memórias humanas e pré-humanas, que surgem novamente no cérebro de cada ser humano.

As imagens assumem na teoria junguiana outra função, elas deixam de ser o conteúdo manifesto (como para Freud) e tornam-se o objeto da interpretação. Assim como seu ex-colega, Jung estava convencido que “quem sonha é participante ativo da construção de uma interpretação de sonhos”, portanto, é necessária a presença do sonhador.

O fundador da psicologia analítica defendia a pesquisa como forma de aprofundar o tema e analisou, em média, 2000 sonhos por ano.

Ciência

Quando tratamos da sociedade tecnológica e veloz em que vivemos, o empirismo se torna essencial para que algo saia do patamar de crença e alcance o nível de verdade. Desse modo, não basta apenas afirmar, apontar uma cadeia de acontecimentos. É preciso, acima de tudo, provar. Assim, até mesmo nos sonhos, apesar de seu caráter tão místico, o homem contemporâneo busca provas e respostas científicas, cujas pesquisas tiveram um importante marco em 1951, com o pioneiro nos estudos do sono Eugene Aserinsky. Ele conectou seu filho a um eletroencefalograma, exame que avalia a atividade elétrica no cérebro. Após certo período sem muita agitação, o aparelho começou a registrar atividade dos olhos e do cérebro com a criança ainda adormecida (BBC News). Era a chamada fase REM (Rapid Eye Movement), na qual a maior parte dos sonhos acontece. Ela é caracterizada, além do movimento ocular rápido, pelo total relaxamento muscular e ondas de alta frequência e dessincronizados à semelhança dos momentos de vigília.

Geralmente, só se consegue lembrar dos sonhos quando acordamos durante o REM. Então, nem adianta dizer que noite passada não se sonhou nada. O que provavelmente aconteceu foi que o indivíduo despertou durante outras fases do sono mais superficiais. “Quando somos acordados durante a fase de sono REM, 95 % das vezes relatamos que estávamos sonhando”, esclarece John Fontelene Araújo, professor da pós-graduação de psicobiologia na Universidade de São Paulo.

“Uma explicação para os sonhos é que ele decorre da re-ativação de circuitos neurais que foram ativados durante a vigília”, aponta Araújo. Desse modo, se não sonhasse, a pessoa enfrentaria grande problemas de amnésia e cognição, haja vista a importância deles na consolidação da memória.

Há, também, outra hipótese de uma segunda importância dos sonhos. De acordo com essa ideia, eles são uma simulação de algo que pode acontecer no futuro, como forma de preparar o indivíduo para o que ainda está por vir. “A principal evidência é quando comparamos sonhos de criança que vivem um ambiente de conflitos de guerra com os sonhos de crianças que vivem em ambiente semelhante, porém sem guerra. As crianças que vivem no ambiente de guerra sonham mais com situações de conflito”, afirma o professor. Entretanto, tal hipótese não é igual a alguns sites da internet, que através de elementos do sonho trazem seus significados antecipatórios,  já que o primeiro caso trata de simulações de ações motoras e sensoriais que facilitariam a execução de funções motoras e sensórias no futuro.

Durante a fase REM todas as áreas têm o mesmo grau de ativação de quando estamos acordados, exceto o córtex pré-frontal, centro de controles sofisticado, onde ocorre os processos mentais e cognitivos mais complexos. Por conseguinte, nos nossos sonhos perdemos a autoconsciência e a capacidade de tomar decisões. Em alguns momentos, porém, esse córtex pode ficar mais ativo, gerando os sonhos lúcidos.

O lobo-pré frontal é responsável por processos cognitivos complexos. (Foto: Jobairubiratan)

De acordo com o psicofisiologista Stephen LaBerge, o primeiro relato histórico de um sonho lúcido foi em uma carta de Santo Agostinho, a qual relata um sonho de um médico cartaginês, de nome Genádio, que se importava muito com questões do pós-morte. Nele, o médico é questionado, como um diálogo socrático por um jovem angelical. Em certo momento, o garoto o avisa que tudo é um sonho e a partir daí o sonhador ganha maior consciência e lucidez.

Ademais, para o professor John Araújo, eles poderiam ajudar no tratamento de algumas doenças neurológicas, tais como os distúrbios de sonhos (pesadelos) e Síndrome de Estresse Pós-Traumático, em que ao ter noção de que tudo não passa de um sonho, o indivíduo poderia lutar contra a sua fonte de sofrimento onírica.

Esse tipo de sonho é raro e nem todas as pessoas conseguem tê-lo. Não obstante, existem algumas formas de indução que favorecem o seu aparecimento. Uma delas é a estimulação de baixa intensidade, ou seja, um estímulo que não é capaz de despertar o sujeito, além de se perguntar enquanto acordado se o que se está vivendo é real ou um sonho. Ainda assim, não é uma tarefa fácil e nem todos conseguem.

Indígenas

“Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos”. Essa frase de Davi Kopenawa, líder yanonami e autor do livro A Queda do Céu, a princípio pode nos parecer estranha ou até mesmo injusta. No entanto, ao se debruçar sobre conceitos tão usuais, mas tão diferentes entre essas culturas, como, por exemplo, a morte e a alma, há uma chance de entendermos a verdade dos outros, na qual não prevalece o empirismo.

O grande número de povos faz com que existam as mais diversas teorias oníricas, mas as tratadas aqui pertencem, mais especificamente, aos habitantes das terras baixas da América do Sul.

Primeiramente, é preciso compreender que para eles “corpo e alma têm vidas paralelas”, assim explica a pós-doutoranda em antropologia, Karen Shiratori. Essa Teoria da Concepção da Pessoa já marca a disparidade da ideia de indivíduo ocidental e indígena, já que, em nossa influência cristã, alma e corpo são um mesmo sujeito.

Segundo esses povos, “o sonho é a vida da alma”, isto é, enquanto o corpo dorme, a alma vai perambular por aí e acontecem coisas a ela que não diz respeito ao corpo adormecido. “Ela caça, casa, transa, vai para cidade”, exemplifica Shiratori. Esses dois componentes são tão separados que, muitas vezes, ao descrever acontecimentos oníricos, os indígenas usam a terceira  pessoa.

Outra vez, nota-se a distinção entre o pensamento ocidental e o dos índios: se a alma sai do corpo durante o sono, então não é incorreto afirmar que todos os sonhos são uma “pequena morte”. A definitiva aconteceria quando a alma deixa o corpo, vai viver em outro lugar autonomamente e nunca mais volta. Os próprios sonhos podem representar certo perigo de um fim definitivo, caso a alma seja “capturada por um ser ou seduzida para morar em outra aldeia” e não retorne, transformando o corpo em “uma espécie de casa vazia”.

Mais do que acontecimentos de outra vida, esses fenômenos também são um modo de conhecimento e de adentrar em diversas realidades pois, ao se libertar, a alma pode ir para vários lugares, ocorrendo uma expansão da consciência. Dessa forma, o pajé tem acesso a uma maior quantidade de informações. Por ser alguém que “aprende a sonhar”, a sua alma vai muito longe, “ela vai para o Rio de Janeiro, vai para São Paulo”. Inclusive, durante o treinamento dos futuros xamãs da língua jamamadi, os meninos fazem uso de uma mistura chamada rapé, composta por tabaco pilado e outra substância (como, por exemplo, casca de cacau). Normalmente, o rapé é apenas um estimulante, porém em grandes quantidades ele “permite estabelecer relações com espíritos”, os quais repassam vários ensinamentos, tal “viagem” é comparável a um sonho.

Além disso, sonhos possuem uma importante função política de determinar e orientar os próximos passos de uma aldeia. Como presságios que são, é essencial a difícil tarefa de lembrá-los e contá-los, a fim de evitar futuras tragédias. Karen Shiratori ilustra: ”Se você foi picado por uma cobra em um sonho, o risco de isso acontecer na sua vida também existe”. Isso porque, embora sejam vidas diferentes, “elas correm em paralelo e podem, de alguma forma, se entrecruzar”. Para desfazer o que foi sonhado, existem alguns remédios. A título de exemplo, o povo Kawahiva tem o costume de relatar suas experiências oníricas perto do fogo, e esse elemento teria o poder de evitar que o ocorrido com a alma suceda ao corpo.

Essas são apenas três vertentes e formas de enxergar o sonho. Nesse caso, é preciso ter em mente que os questionamentos são infinitos sobre esse tema e as formas de respondê-los as mais variados. Afinal, todos os homens sonham, de todos os tempos, de todos os lugares.

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Por Ramana R. Duarte – Jornalismo Jr.

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