Tatuagem, de Hilton Lacerda, é um drama nordestino que retrata a vida de um grupo teatral de cabaré, intitulado Chão de Estrelas, em meio ao Brasil ditatorial dos anos 70. O longa se ergue sob martírio da repressão, de personagens entre o pudor e o pecado, e escandaliza com tamanha naturalidade o c*, ao o por enquanto instrumento de luta; e é por isso que Tatuagem não é, de longe, qualquer filme. E ainda que faça alusão ao passado, é muito mais uma narrativa que ascende, no agora, a fogueira que nos queima, mas que também perpetua a chama da esperança que nos levará vivo ao futuro.
Em suas introspecções, o filósofo Gilles Deleuze afirma que “é preciso que a arte, particularmente a arte cinematográfica, participe dessa tarefa: não se endereçar a um povo suposto, já lá, mas contribuir para a invenção de um povo” e nos diz ainda que “o povo que falta é um devir, ele se inventa, nas favelas e nos campos, ou nos guetos, nas condições de luta para quais uma arte necessariamente política deve contribuir”.
Assim, a arte gera um ponto de ruptura que possibilita uma politização e une um conjunto de almas na construção do novo, e por essa perspectiva, Tatuagem diz muito. Ao por o c* na linha de frente da peça, Tatuagem não apenas gera uma tensão ao depravar a concepção do dito moral, bem como ergue uma nova consciência e põe a utopia em disputa, pois entrega, na própria ruína, o princípio da revolução e a porta da vitória: o c*. O c* instaura a guerra, mas ele também é a razão propulsora da glória, pois a redenção provém da vida que insulta, do corpo cru exposto ao sol, do c* para a lua, ainda que arda – “a única coisa que nos salva, a única coisa que nos une, a única utopia possível é a utopia do c*”.
E talvez seja isso que tanto o poeta norte-americano Allen Ginsberg, um dos expoentes da Geração Beat*, pregava ao declarar que “o mundo é santo! A alma é santa! A pele é santa! O nariz é santo! Santos a língua, o p*, a mão, o c*! Tudo é santo! Todo mundo é santo! Todo lugar é santo! Todo dia está na eternidade! Todo homem é um anjo! O vagabundo é tão santo quanto o serafim! O louco é tão santo quanto você, minha alma é santa!”. Uivo*, talvez seu poema mais sagrado se emerge como um manifesto bíblico de prazer, de vida, morte e ressurreição, que sacramenta a voz para fora da carne e a própria carne como princípio da revolução: o uivo.
Ou até mesmo, mais recentemente, Mal dos Trópicos (Queda e Ascensão de Orfeu da Consolação)*, talvez diga isso de maneira mais consoante e abstrata aos nossos ouvidos, mas não menos simbólica. O álbum de Thiago Pethit se constrói na profecia de 9 canções e parte disso tudo se fundamenta no mito de Orfeu, poeta e músico grego que, após a morte de Eurídice, desceu ao inferno por simplesmente amá-la, e ainda que não tenha a resgatado do mundo dos mortos, no fim, Orfeu foi morto por bacantes* e se repousou para sempre nos braços de sua amada.
Vale entender que toda concepção de morte é muito subjetiva, quando, através da morte, se chega ao paraíso. E ainda que, nos versos transcritos de Orfeu, quarta música do álbum, o eu lírico seja devorado vivo – “quando chega a noite, eu sou o amante que você devora, de trás para frente, feito bacante lambendo os seus dentes” -, é preciso lembrar que Mal dos Trópicos é uma jornada e em Samba do Orfeu, última música do álbum, Pethit taciturnamente proclama o arrebatamento do eu lírico à glória pelo próprio devoro dos homens – “devore-me”. E, nesse sentido, talvez o álbum num todo fale muito sobre sacrifício de corpos e peles, mas também sobre remição através do próprio pelo e sangue, sobre fé, sobre mastigar o fruto proibido, se entregar nu à tragédia, mas se consagrar santo no fim – pois, de fato, é e será.
No fim, tudo é sobre entender em prol da vitória, a urgência da dor, a urgência do corpo, a urgência do gozo, a urgência do c*; e não tão menos que a urgência, pois não se trata de imoralidade, no máximo subversão necessária, e o c*, ainda que seja o castigo dos homens e faça sangrar à carne seca, salva.
Geração Beat* – Movimento literário contracultura que eclodiu nos EUA na década de 40/50
Uivo* – Poema de Allen Ginsberg
Mal dos Trópicos (Queda e Ascensão de Orfeu da Consolação) – Thiago Pethit
Bacantes* – Ninfetas que na mitologia grega mataram Orfeu
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Por Higor Gabriel Barbosa dos Santos – Fala! UFMG