terça-feira, 19 março, 24
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Raízes indígenas resistem em tempos de crise

Após um caminho difícil em uma estrada defeituosa por sua própria natureza, a aldeia Rio Silveira cumprimenta os visitantes. Dentro dos portões, a longa trilha às margens do rio, que carrega o nome da comunidade, leva a uma pequena porém convidativa cachoeira. As montanhas que rodeiam o espaço realçam a conexão com a terra.

Nós, indígenas, consideramos que toda plantinha tem uma vida e tratamos que nem gente.

Afirma Valdecir Fernandes, nativo da aldeia.

Festival em Bertioga comemora o dia do índio

Na cidade litorânea de Bertioga, o festival que comemora o mês do índio traz a troca cultural entre os nativos e os visitantes. Turistas, crianças e famílias compõe a diversidade do evento. As danças típicas indígenas, que acontecem na entrada da aldeia, carregam a história dos povos originários. Enquanto um drone, comandado por um turista, registra a festa, o olhar curioso das crianças guarani m’bya que acompanha o objeto mostra a junção das realidades.

No núcleo da aldeia, o tradicional “txipa” é preparado pela família do cacique e oferecido aos visitantes. O aroma que percorre os arredores da oca chama a atenção para o prato guarani, composto por uma massa recheada de palmito. Um dos recursos mais utilizados pela aldeia, o palmito é cultivado a cada cinco anos. A árvore de seis metros é derrubada e o alimento, escondido na bainha das folhas, é extraído.

No ritual da cultura guarani, antes da colheita, é preciso solicitar a permissão de Nhanderu, divindade criadora da natureza. A presença da reza é algo simbólico, ajuda a concretizar o pedido feito ao seu deus para a extração do recurso natural. Depois de retirado, as sementes são reutilizadas para gerar novos frutos.

Natureza é tudo

Enquanto o pajé da aldeia fala sobre as diferentes espécies de flores e animais que existem, as crianças escutam cuidadosamente cada palavra de seu discurso. As novas gerações crescem vendo seus núcleos familiares respeitarem as tradições milenares sobre o manejo dos recursos naturais. A concepção de natureza dos povos indígenas perpassa a visão de um único ecossistema natural marcado pela diversidade. Para eles, a natureza é uma inteligência e um vínculo.

O aroma refrescante das enormes árvores e a brisa suave se misturam de forma natural com o canto dos pássaros. As montanhas que abrigam o cenário da aldeia concedem espaço para os meninos que conversam na língua guarani, enquanto jogam bola. Admirando a natureza que estava em sua volta, a artesã indígena, Rosangela, declara, “A natureza, para nós, é tudo. É vivência”. Desde as casas construídas com pau a pique até as plantas medicinais, a comunidade indígena entende que o corpo humano não existe de forma dissociada do meio ambiente.

A tinta de jenipapo, fruto que possui um sumo líquido colorido, ilustra os significados e tradições da aldeia. Os rostos e braços pincelados com a tintura atravessam as mais diversas significações. Proteção, caça, guerra, são simbologias que carregam consigo a raízes do passado e os frutos do futuro.

Os trabalhos artesanais se espalham em diferentes pontos no chão de terra. As artesãs oferecem sorrisos tímidos para os visitantes que pedem informações sobre a venda dos produtos, que vão desde típicos colares e pulseiras indígenas até objetos de decoração feitos em madeira. No caminho entre o início e o fim da aldeia, cumprimentamos uma moradora que trabalha na criação de uma cesta. Sentada na porta de uma das ocas, ela retribui com um aceno e continua concentrada em seu trabalho. As palhas coloridas, que se destacam com o brilhar do sol, conseguem trazer sorrisos aos rostos da artesã e de seu marido ao finalizar o trabalho.

Durante toda a excursão pelo local, é perceptível a presença e importância do ecossistema na vida dos habitantes da aldeia. Cada fruto plantado e tinta utilizada representa o vínculo com a natureza. Durante a colheita, os indígenas têm noção de que, para todo recurso retirado, deve-se cultivar outro em seu lugar. A relação de respeito e proteção com o meio ambiente vem, principalmente, do reconhecimento de seus recursos como sustento. A conscientização de que o meio ambiente lhes oferece alimentos para consumo, matéria prima para trabalhos artesanais, construção de suas casas, pinturas corporais faz parte da aldeia e cultura guarani.

A natureza é um ser e ela, dentro da relação com ser humano, é nossa mãe e nós somos filhos dela. Os ecossistemas são berçários de vida, centros de gerações de vida. Toda a inteligência da natureza é voltada para preservação e manutenção da vida.

(Kaká Werá)

Contexto urbano

Na visão de Kaká Werá, antropólogo indígena especializado na área ambiental, a natureza é um ser com consciência diferente da humana. “A inteligência da natureza é voltada para a preservação e manutenção da vida”, afirma.

Em seus anos de estudo sobre Ecologia, Werá desenvolveu o pensamento de essencialidade vital do meio ambiente. Passou a entender que cada aspecto presente no cotidiano humano é ecológico, como o ar que respiramos e os alimentos que consumimos. O antropólogo acredita que qualquer ação feita na natureza, irá refletir no homem.

Apesar de não ter crescido em uma aldeia indígena, ele manteve seu trabalho de pesquisa em paralelo com a cultura de seus ancestrais. O resultado do aprendizado que recebeu dos povos nativos está nas ideias que promove hoje.

Entre palestras e entrevistas, Kaká explica a relação da natureza com a vida, citando pesquisas científicas e ressaltando a importância de pensar nas gerações futuras.

Para cada atitude com a natureza, deve-se pensar no que pode acontecer por sete gerações. ‘Se eu plantar esse pé de milho hoje, o que vai acontecer com meu filhos e meus netos? E se for transgênico?’. É trocar o egoísmo pelo ECOísmo.

O bom relacionamento do homem com o meio ambiente é baseado na troca, onde a exploração dá lugar à sustentabilidade.

Cultura indígena vs Grandes indústrias

Na cultura indígena, o questionamento sobre o futuro e o entendimento sobre o equilíbrio da natureza são dois aspectos presentes. Em contrapartida, nas grandes indústrias, a falta de conscientização e a extração dos recursos de forma desgovernada acaba trazendo desequilíbrio socioambiental. O agronegócio costuma seguir um padrão: quanto maior a produção, mais lucro. Por conta disso, adiciona o agrotóxico nas plantações, cria produtos geneticamente modificados, entre outros métodos que fazem mal para o meio ambiente e, consequentemente, para a saúde humana.

Apesar de trazer conhecimentos herdados de suas tradições, o indígena Valdecir Fernandes reconhece que o agronegócio precisa plantar mais por conta das milhares de pessoas que dependem desses recursos.

No contexto indígena, é comum aguardar os períodos corretos para o plantio. Reflexivo, Valdecir observa a biodiversidade na comunidade indígena e relembra o espaço que a aldeia utiliza para cultivar os alimentos e adubar o equilíbrio. Se extrair demais, acaba. “Querem aumentar a área para plantar mais, mas, do jeito que está avançando, com certeza vai acabar a natureza”, afirma Valdecir, enquanto uma feição séria toma conta de seu rosto.

O dilema da civilização urbana é conseguir migrar de um sistema de exploração para um sistema que não agride o ecossistema. A relação cidade e meio ambiente só será positiva quando os avanços tecnológicos se basearem na ideia de sustentabilidade. Kaká Werá dá exemplos das mudanças que precisam acontecer: carros que não emitem gases prejudiciais à saúde, promover a conscientização de despoluição das cidades, criar mais espaços de contato com o meio ambiente.

Resistência

Na aldeia Rio Silveira, os moradores explicam para os convidados seus ideais de cuidado com a natureza passando para os não indígenas a essência de suas tradições guarani. Com um grande cocar, simbólico na cultura indígena, o professor da aldeia, Marcelo Wera, desabafa: “Nós estamos resistindo desde a época colonial. Somos originários e só queremos o que é nosso por direito, a preservação da natureza e paz”.

Atualmente, com a exploração ambiental, a luta pela preservação dos territórios se intensificou. Nas aldeias, a resistência não é apenas para proteger seus locais de moradia, mas também garantir a existência de seu povo, da terra e de seus recursos naturais. O povo kaiowá, na região do Mato Grosso do Sul, tem suas terras invadidas há várias décadas por agricultores locais. Os ataques não poupam crianças, mulheres ou idosos. Nessa guerra onde ninguém tem nome e nem rosto, o que guia os ruralistas é a ambição. O dinheiro, preconceito e dominação fazem com que esses embates resultem em um genocídio cultural e social.

As áreas demarcadas para os povos nativos são consideradas reservas ambientais.  Segundo o Boletim do desmatamento da Amazônia Legal, realizado pelo Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) em parceria com o Imazon, em fevereiro de 2019 as terras indígenas corresponderam a apenas 3% do desmatamento quando comparado a áreas privadas ou sob diversas áreas de posse. Devido a valorização do ecossistema, a extração e utilização dos recursos naturais nas aldeias indígenas não são prejudiciais a nenhuma forma de vida. As ações são pensadas com cautela e executadas para retirar apenas o necessário, sem super consumo.

O dia em que nós, povos indígenas, já não conseguirmos existir, ninguém vai ter a capacidade de resistência também. É muito importante que a sociedade se senta sensibilizada porque pensar o Brasil sem pensar os povos indígenas é pensar um Brasil cinza.

Afirma Célia Xakriabá, professora, ativista indígena e mestre em educação pela UnB.

FUNAI

A resistência, presente em cada parte do santuário natural, é um traço que ecoa a luta diária dos indígenas pelo reconhecimento de suas terras. A Fundação Nacional do Índio (Funai) tem como objetivo proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil. Uma das pautas mais importantes executadas pela entidade é a delimitação e registro de terras.

Mesmo de forma indireta, a demarcação dos territórios contribui para a preservação da qualidade da vida humana. Segundo levantamento realizado em 2017 pelo Instituto Sócio Ambiental (ISA), as terras indígenas são o principal impedimento contra a destruição da floresta amazônica.

Atualmente, existem mais de 462 terras indígenas, sendo que 54% da distribuição regularizada se encontra na região Norte do país. Apesar dos números altos, de acordo com informação disponibilizada no site da própria Funai, os territórios demarcados, em algumas áreas do Brasil, não atendem nem metade do número de indígenas que vivem no local. Além disso, as áreas são reservadas apenas para uso dos povos nativos, embora pertençam, oficialmente, à União.

A política unificada da Funai é um entrave presente na intermediação. Guaranis, Tupinambás, Xavantes, Caiapós, Guajajara são algumas das diferentes etnias presentes no Brasil e que, até hoje, não possuem políticas específicas para cada povo. Cristian Wariu, indígena da etnia Xavante, afirma que “o que os povos indígenas estão pedindo é respeito a essa diversidade das culturas e da vivência indígena. E que políticas sejam geradas para atender cada um dos diferentes povos”.

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Bianca Dias e Fernanda Ming – Fala! Anhembi

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