Por Leonardo Delatorre Leite – Reaviva MACK
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Ben: Mas por que eu? – perguntou assustado com a indicação. – Eu fui escolhido para isso?
Gever: Escolhido? De onde você tirou isso?
Ben: De Algum modo estou aqui (…) – concluiu o guardião de livros meio sem jeito (…) só pode ser que fui escolhido pelos deuses para essa guerra.
Gever: Por que vocês sempre acham que precisam ser escolhidos, que precisam ser nobres de nascimento para fazer algo bom? Só podem fazer coisas especiais se forem especiais? Não deveria ser o contrário? Fazer algo especial porque é a atitude certa a ser tomada? (…) Há uma guerra lá fora (…) sempre há alguma. Precisa-se de alguém que esteja disposto a fazer o que é certo.
Ben: Tudo o que precisamos passar nesta vida já não foi escrito por El, como os sacerdotes em Havilá costumam dizer? Ou somos nós que decidimos o que devemos ser?
Gever: Por que ambos os conceitos não podem ser verdadeiros? Será que é necessário eliminar um ou outro? Se El definiu seu destino, isso não vai acontecer automaticamente, cabe a você construí-lo também. Você é uma criatura livre. Se ele o escolheu, você também precisa escolher. E no final, suas escolhas serão as mesmas, pois você só não pode ser mais livre do que El, senão você seria El.
(As crônicas de Olam. L.L Wurlitzer)
Privilégio decorrente da graça divina, ela reforça a responsabilidade humana, nunca o reduz.
D.A. Carson
Demolidor
A terceira temporada de Demolidor, disponibilizada pela Netflix em outubro de 2018, nos apresenta uma excelente reflexão acerca de grandes problemas morais e teológicos, especialmente no que concerne ao problema de como a soberania de Deus se relaciona com a responsabilidade humana, de tal forma que ambos os conceitos coexistam.
Os primeiros episódios da tão aclamada série mostram Matt Murdock extremamente desamparado com os eventos e conflitos anteriores; apresentados no final da primeira temporada de Os Defensores.
Murdock encontra-se decepcionado, recuperando-se de traumas e hematomas ocasionados por suas desventuras passadas. Vale ressaltar que as feridas provocadas pelos acontecimentos das temporadas anteriores não se manifestam meramente no aspecto físico, mas também no âmbito psicológico e especialmente em sua devoção espiritual.
As crenças do personagem no seu papel designado para combater a injustiça e na concepção de que Deus é um ser bondoso e disposto a combater o mal e zelar pelo bem são profundamente abaladas.
Não bastasse as feridas, angústias, tristezas e traumas de Matt, seu principal antagonista Wilson Fisk, conhecido como Rei do Crime, estava cada vez mais obtendo sucesso em seus planos para garantir sua liberdade e impunidade.
Todos esses fatos deixam o personagem principal da trama extremamente descrente e cético quanto aos dogmas do cristianismo, especialmente quanto aos atributos de Deus.
Murdock já não mais via sentido e significado em sua jornada como vigilante que combatia a criminalidade e assegurava o bem onde a justiça dos homens falhava ou não alcançava.
Inicialmente, o Demolidor acreditava que seu papel enquanto vigilante era uma forma de Deus usá-lo como instrumento no combate ao mal. Contudo, com os eventos recentes, Matt se sente abandonado e frustrado; ao passo que Wilson Fisk, por meio de atitudes manipulativas, chegava cada vez mais perto de concretizar seu plano.
Assim, na concepção de Matt, ao passo que o plano bondoso de Deus parecia ter falhado, os planos da força do mal orquestrados por Fisk tomavam forma e evoluíam gradativamente.
A jornada de Murdock apresentada na terceira temporada lembra a reação que muitos de nós temos diante das angústias do cotidiano. Às vezes somos tomados por uma tristeza tão paralisante que acabamos por nos esquecer de que tudo no mundo encontra-se governado pela soberania de Deus.
Não há um único centímetro quadrado, em todos os domínios de nossa existência, sobre os quais Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: É meu!
Abraham Kuyper
Enquanto estivermos perseverantes nos mandamentos bíblicos e em constante oração, a graça de Deus irá nos socorrer, concedendo força nas tribulações. “Devemos suportar as aflições, mesmo que sejam duradouras, sabendo que somos extraordinariamente bem medicados, enquanto a graça de Deus atuar em nosso favor”. (João Calvino).
Livro de Rute
No livro de Rute, é possível vislumbrar um paralelo com a terceira temporada de Demolidor. No começo do livro, é apresentada ao leitor a difícil conjuntura pela qual o povo judeu passava naquele período de instabilidade política e social (Período dos juízes).
Houve fome na terra prometida; mas vale ressaltar que fomes não eram situações imprevisíveis e inéditas na história do povo judeu. Naquela situação específica, a fome era uma forma de Deus pesar a mão sobre seu povo a fim de que ele retornasse aos caminhos da retidão e abandonasse a idolatria.
Diante da difícil situação, Elimeleque, homem de família com mulher e dois filhos (sua esposa era Noemi e seus filhos Malom e Quiliom), decide abandonar sua cidade, Belém de Judá, e ir morar em Moabe. Essa decisão significaria o abandono da terra prometida de Deus, berço da espiritualidade e da cultura de eu próprio povo.
Nessa situação, todo o coração de Elimeleque é exposto na falta de confiança no Senhor. Situações-limite têm o poder de nos mostrar a realidade sobre o que está em nosso coração.
Para começar, a reação apropriada do povo judeu diante de Deus pesando a mão sobre eles em Belém deveria ser a de se voltarem, como povo, para Deus em arrependimento. Mas eles são tentados a seguir o caminho aparentemente mais fácil, ir para Moabe.
Na cabeça deles, talvez seja melhor estar nos campos verdejantes e sem o bom pastor, do que no vale da sombra da morte com o bom pastor (…) Além do mais, moabitas não eram auxiliadores. Eles haviam dificultado o caminho dos israelitas quando o povo de Deus voltou do Egito (…) os moabitas haviam oprimido os israelitas nos tempos do Rei Eglom.
O relacionamento entre essas nações era complicadíssimo. Mas, mesmo assim, Elimeleque preferiu ir para esta terra. (Emilio Garofalo Neto)
A decisão de Elimeleque apenas causa tragédias e consequências negativas, como a sua própria morte e a morte de seus dois filhos. Noemi foi assolada pelo desamparo e ficou em companhia somente das esposas de seus filhos falecidos: Orfa e Rute.
Tais consequências desastrosas apenas mostram os perigos da crença na autodeterminação e da ideia de que somos senhores de nosso próprio destino.
O livro de Rute começa nos mostrando que o caminho da vida não é simplesmente buscar o melhor para si, mas buscar viver o amor sacrificial do caminho proposto pelo Senhor, mesmo que esse caminho seja duro.
O caminho mais fácil não é necessariamente o correto. Nisso vem um alerta importante: nossos pecados não são seguros, eles nunca ficam onde colocamos. Logo o pecado com suas consequências começa a complicar a vida não só de Elimeleque, mas de toda a família. (Emilio Garofalo Neto)
Em meio a situações difíceis, não cabe a nós abandonar o caminho da santidade. O mal nos fortalece e nos ensina acerca da importância da dependência de Cristo em nossas vidas.
“Deus permite que vivamos e soframos a consequência de nossos pecados e caminhos maus. Foi assim com Adão e Eva, com Israel, com Abraão, com Pedro, conosco. É parte de nosso aprendizado e parte de aprendermos a amar mais o reino. Mas estes caminhos difíceis não implicam que Deus abandonou seu povo; que ele estará distante. Afinal, trata-se do Deus da aliança que em todas as coisas coordena nossa vida para o bem.”
Deus está sempre imediatamente pronto a perdoar seu povo. Noemi, apesar de sua amargura e de suas decisões não muito boas, foi imensamente abençoada pela sua nora, Rute, que demonstrou enorme devoção e fé para com o Senhor de Israel, escolhendo o amor pactual e fidelidade para com sua sogra.
Disse, porém, Rute: “Não me instes para que te deixe e me obrigue a não seguir-te; porque, aonde quer que fores, irei eu e, onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus. Onde quer que morreres, morrerei eu e aí serei sepultada; faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver, se outra coisa que não seja a morte me separar de ti.” (…) Vendo pois, Noemi que de todo estava resolvida a acompanhá-la, deixou de insistir com ela.
(Livro de Rute)
Rute e Noemi retornam para Belém; Rute se casa com Boaz, um homem piedoso, e constrói uma linda família ao lado de seu marido.
Devido ao arrependimento de Noemi (estava perdida e caída, mas foi regatada) e ao esforço perseverante de Rute, elas foram abençoadas pela providência bondosa divina; sendo que Rute, uma moabita, entrou para linhagem do Rei Davi.
Em nossos caminhos, devemos lembrar que foi o Senhor quem preparou todas as condições para o que temos. Não foi precisamos escolher entre confiar na soberania e agir. Nosso emprego, nosso estudo, nossas oportunidades, nossos contatos, nossos dons e capacidades, tudo isso veio da mão do Senhor. (…) No caso de Rute, a soberania de Deus se mostra preparando cada passo. A fidelidade pactual de Deus para com ela e Noemi não falha. Deus foi fiel às promessas que fez em seu pacto. Deus demonstra bondade para Rute e Noemi, sua bondade está ligada à sua promessa.
Emilio Garofalo
Soberania de Deus e responsabilidade humana caminham juntas.
A soberania de Deus deve nos dar forças para lutar com mais confiança e não deve ser usada como uma desculpa para justificar e instrumentalizar nossa preguiça, mas sim para instrumentalizar o nosso constante esforço e empenho, de tal modo que nossas obras sejam as obras de Deus, que nossa batalha seja a batalha de Deus.
O Deus que conquista, conquista através de nossa diligência e coragem.
Devemos ser diligentes com tudo que o Senhor nos dá a fazer. Entretanto, sem nos esquecermos de que Deus preparou e segue orquestrando várias coisas que aos olhos humanos parecem acaso.
A teia da providência é maravilhosa e vai mais longe que podemos imaginar (…) Não sabemos o que Deus está fazendo; o que sabemos é que ele nos ama, sua fidelidade ao seu pacto conosco é infalível (…) Deus nos chama para participar de sua obra, mas é ele quem faz tudo por nós de maneira maravilhosa e muitas vezes inesperada.
Vida cristã é vida de serviço, muitas vezes sofrido; mas vida de quem sabe que tem um Senhor amoroso cuidando e protegendo. Assim dá para dormir mais tranquilo.
Dá para levantar cedo, reforçar o café e ir ganhar o pão. Deus sabe o que nos espera; foi ele que colocou o futuro lá. (As boas novas em Rute- Redenção nos campos do Senhor).
Paralelo entre a série Demolidor e o livro de Rute
Voltando para a série Demolidor; ao longo da trama, Matt Murdock reconhece que apesar das adversidades, Deus sempre estava presente através de Sua Providência.
Wilson Fisk é derrotado através dos esforços de Matt, que não se desviou das virtudes e da coragem, mas manteve-se firme no bem e na justiça. Ao final, o protagonista profere um breve discurso e pronunciamento, que ao meu ver resume brevemente a questão acerca da responsabilidade humana e soberania divina.
O plano de Deus é como uma linda tapeçaria, e a tragédia de ser humano é que só conseguimos vê-los por trás, com todos os fios esfarrapados e, as cores turvas e que só temos um lampejo da verdadeira beleza que seria revelada caso pudéssemos ver todo o padrão do outro lado, como Deus vê.” (Matt Murdock. O Demolidor)
Em nossas batalhas diárias, devemos sempre ter em mente que o Senhor Deus é soberano sobre o mal e que as adversidades fazem com que busquemos cada vez mais o caminho da santidade; pois a vitória já é de Cristo.
Deus onipotente de nenhum modo permitiria o mal nas suas obras se não fosse tão poderoso e bom, para tirar o bem, mesmo do mal.
Santo Tomás de Aquino, Questiones Disputatae de Veritate
A boa notícia é que o Deus que está conosco é um Deus que quer transformar nossa escuridão em luz, nosso conflito em shalom, nossa perda em abundância, nosso desespero em alegria. (…)
Se um Deus assim está conosco, isso é uma boa notícia para toda a eternidade”. (John N. Oswalt, The NIV Application Commentary: Isaiah)