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Adoção: altruísmo, responsabilidade e mais amor, por favor

O relógio marcava três horas da madrugada de sábado para domingo e, como de se esperar, o silêncio reinava pelas ruas dos bairros menos noturnos da capital paulistana.

A escuridão e a quietude iam, gradativamente, preenchendo a noite e se alastrando pelas vias da Mooca, onde trabalhadores, esgotados pela semana cheia, repousavam, finalmente, suas cabeças cansadas sob travesseiros talvez tão antigos quanto suas casinhas simplórias, coloridas e alegres, típicas do bairro onde nasceu o Clube Atlético Juventus. Tudo o que podia ser ouvido ali era o barulho do vento, que, naquela noite, soprava com força; ou então o eventual tiquetaquear de algum relógio de parede, daqueles que funcionam com pilha. Silenciava-se a Mooca, exceto por um imóvel.

O apartamento no primeiro andar, de um prédio de três andares, em uma das ruazinhas do tradicional bairro da zona leste paulistana estava escuro, com as cortinas fechadas sob a janela da sala e as luzes apagadas. Mas lá conseguia-se ouvir bem mais do que o barulho do vento soprando forte ou o tique taque do relógio.

De um lado para o outro, de cima para baixo, ouvia-se o impacto de unhas contra o piso de madeira do chão da sala, alguns grunhidos, o barulho de colisão de quem esbarra em algum móvel e vários miados. Os quatro gatos estavam acordados, apesar do horário, e correndo por todos os cantos, cheios de energia, apesar da falta de luz. Eles saltavam do sofá e se atracavam uns nos outros, como se estivessem brincando de pega-pega.

A porta do quarto rangeu, em abertura “O que que vocês tão fazendo aí? Vão dormir!” Ao ouvirem a voz de Erick, os gatos se espalharam, recolhendo-se; alguns para debaixo do sofá, outros, para dentro do quarto, debaixo da cama. Silenciava-se a Mooca, naquela madrugada. Horas depois, na manhã ensolarada de um domingo do começo de março de 2018, o dia estava propício para uma ida ao campo de futebol, próximo dali, onde, “se o Juventus ganhar, pode tirar a Lusa”.

Erick parecia animado ao comentar isso na noite anterior, mas não acordou para ir ao jogo na manhã seguinte. Quem se levantou primeiro foi Viviane, e, ainda sonolenta, despejava em quatro vasilhames o desjejum dos bichanos, que a seguiam, já acordados a muito mais tempo que ela.

O sol agora entrava pela janela, com as cortinas abertas, e iluminava todos os detalhes de um apartamento que refletia o imenso amor e zelo de Viviane Vigo e Erick Spera por aqueles felinos; o bebedouro elétrico que gera uma pequena cascata, “pra eles terem interesse naquilo e beberem mais água”, disse Vigo, as telas de proteção nas janelas, as estantes vazias nas paredes – que servem para quando os gatos resolvem pular mais alto do que do chão para o sofá – a cesta cheia daqueles brinquedos de borracha que fazem barulho quando apertados, arranhadores onde eles possam meter suas garras – que já foram transportados várias vezes até Caieiras, cidade natal de Erick, para que seu pai, Sérgio Spera, os remendasse, reforçando-os com vários pedaços de corda – e a tatuagem no antebraço de Viviane: o contorno de quatro gatos.

Há outros detalhes no apartamento que expõe mais uma paixão do casal; a saga de George Lucas, Star Wars. Dentre vários bonecos que ficam ao entorno da TV, no centro da sala, um Senhor Cabeça de Batata com uma capa preta segurando um sabre de luz vermelho. Bem mais acima, estrategicamente posicionado para que os gatos não cheguem até ali, um colecionável de uns cinquenta centímetros do Darth Vader.

Na parede que fica ao lado esquerdo da TV, perto da porta de entrada, um quadro, também de Vader, com os dizeres ‘seu império precisa de você’, em inglês. Viviane e Erick fizeram questão de espalhar referências à Star Wars em todos os lugares, inclusive, nos nomes que escolheram para os bichanos: os dois machos e as duas fêmeas foram batizados em homenagem a personagens da saga.

O primeiro a chegar até a ração era Luke, o gato cinza-esverdeado da barriga branca, e também o maior dos quatro. Ele veio acompanhado de Leia – a gata tricolor, branca de manchas preta e caramelo. Também a mais rechonchuda e a que mais gosta de comida; tem o hábito de ficar na cozinha por que sabe que os petiscos para gatos estão guardados ali.

Já a menor deles, Padmé – uma gatinha magricela, branca, mas, levemente bronzeada por uma coloração cinza bem clara – chegou depois; curiosa por natureza, dava mais importância a um elástico de cabelo com o qual brincava em cima do sofá. Só depois que três dos quatro vira-latas terminaram sua refeição, aparecera Anakin, um gato parecido com Padmé, só que maior, mais acinzentado e nada curioso, apenas muito assustado.

Feita a alimentação matinal de seus considerados filhos, Viviane partiu para a tarefa de limpar as suas caixas de areia. Eram quatro, uma para cada gato, duas ficavam no banheiro e duas na lavanderia. E não se tratavam de caixas, exatamente, mas sim de pequenas casinhas fechadas. Também não continham areia comum, mas sim, areia sílica, que são micro cristais muito mais higiênicos do que a areia, em si.

Tudo ali era pensado no conforto dos animais, que agora já estavam separados pela sala: Padmé tentando acertar uma mosca com a pata, Leia tomando um banho de sol, Anakin enfurnado debaixo do sofá, enquanto Luke foi ao quarto, a procura de Erick. Nem imaginavam (e nem poderiam) como seria a vida longe de seus humanos.

A amizade de uma vida

Quando Viviane e Erick estacionaram o seu Corsa prateado ao lado do Shopping D, na Marginal Tietê da capital paulistana, fazia cinco dias que havia começado uma nova estação do ano. Num dia de tempo ainda um pouco gélido por conta do inverno, a pouco acabado, algo além das flores que começavam, aos poucos, a adornar as árvores na vigente sazão, florescia ali.

Adentrando a feira de adoção da UIPA (União Internacional Protetora dos Animais), já tinham em mente a escolha de sair de lá com dois novos amigos, pois “assim um faria companhia ao outro”, disse Vigo. Neste dia vinte e sete de setembro de 2014, o casal voltava para a Mooca com Luke e Leia, adotados já em idade adulta. O processo que envolve o imenso carinho vivido entre estes animais e o casal, assim como as flores que trazem a primavera, começava, ali, a desabrochar.

Mas a vida, para eles, ainda não estava completa, por um todo. Mal passaram-se quatro estações, ao certo, do momento em que o casal adotou os seus dois primeiros filhos felinos e eles já estavam prontos para fazer tudo outra vez. Foi então que, pouco antes de completarem a primeira primavera juntos, os quatro (os dois humanos e os dois gatos) resolveram que poderiam aumentar a família.

No inverno de 2015, ano seguinte à primeira adoção, no meio do mês de julho, sentiram, mais uma vez, a necessidade de aquecer seus corações. Viviane dirigiu até outra feira de adoção, das diversas que existem espalhadas pela Pauliceia. Desta vez, a feira era organizada por um gigantesco Pet Shop, localizado na Avenida Presidente Castelo Branco. Lá, adotaram o gato mais assustado do mundo, Anakin.

As estações mudaram novamente e, mais uma vez, o inverno batia à porta dos paulistanos. E, quando a temperatura baixou na Mooca, no mês de julho daquele ano de 2016, Viviane e Erick decidiram seguir a tradição invernal do ano passado de adicionar mais um membro ao clã Skywalker de felinos adotados. Família esta que ainda não poderia estar completa, pois, na história contada por George Lucas, os gêmeos Luke e Leia são filhos de Anakin (posteriormente conhecido como Dath Vader) e de Padmé.

Apesar dos, até então, três gatinhos do casal não serem relacionados por sangue, ainda faltava uma fêmea para ser batizada de Padmé, para que tudo lá na Mooca estivesse, finalmente, em perfeito balanço: como a Força. Viviane dirigiu, mais uma vez, até a mesma feira onde ela e Erick adotaram o desconfiado Anakin. Quando voltaram para casa, não faltava mais Padmé para fazer companhia a Anakin, Luke e Leia. Não faltaria amor. Não faltava mais nada.

Os bichanos Jedis da Mooca, que agora voltavam a pular para todos os lados da sala, (com exceção de Leia, que preferia miar para os petiscos na cozinha), representam uma porcentagem muito pequena de animais os quais tiveram destino diferente daqueles milhares que permanecem nas inúmeras feiras acontecendo pelo país. Dos que vivem em ONGs, graças ao altruísmo daqueles que, geralmente, tiram do próprio bolso para financiar o ato de promover a adoção.

Dos sete milhões de cachorros que nem às feiras chegaram, e que habitam as ruas de todo o estado de São Paulo. Dos trinta milhões de cães e gatos que vivem jogados pelas ruas de todo o país; os que nascem nas ruas (local onde também vem a óbito, em sua maioria, por atropelamento) e também aqueles que na rua são, num ato de covardia, abandonados – e que ali passam o restante de suas vidas encurtadas revirando o lixo atrás de qualquer sobra que possa alimentá-los.

A parceria e o trabalho das associações Matilha Cultural e Natureza em Forma

Naquele domingo de sol tímido, dentre alguns dos animais que vivem em ONGs e que tem a oportunidade de serem levados até uma feira de adoção para que, esperançosamente, possam vir a ser encontrados por um tutor responsável, sete gatos e cerca de vinte e cinco cachorros aguardavam que a sorte lhes sorrisse, em um centro cultural, no centro de São Paulo.

Entre a República e a Consolação, na Rua Rego Freitas, o espaço aconchegante cedido pela entidade Matilha Cultural para que a associação Natureza em Forma realize, dominicalmente, esse ato de amor ao próximo, parecia ser o paraíso. Isto porque o local é o primeiro do país a realizar uma feira de adoção com todos os cães espalhados pelo recinto, caminhando livremente, ao invés de mantê-los em jaulas individuais. As grades de entrada e saída daquele espaço, referente à galeria do centro cultural, tornam-se um grande cercado onde vinte e cinco cães caminham e comem livremente, acompanhados de alguns voluntários.

A feira é organizada com os animais soltos dessa maneira “para que os seus futuros tutores conheçam sua verdadeira personalidade desde o início”, segundo o site da associação. E o método funciona. Logo que a grade de entrada foi aberta, ouve-se um grito de preocupação vindo de uma das voluntárias: “FREDERICO, NÃO!”.

Mas Frederico, um vira lata (como a maioria dos cães ali presentes) magricela, de porte médio e pelagem branca, já havia escapado e foi apanhado por um dos seguranças na porta de entrada, antes que corresse, sabe-se lá para onde. Por meio da tática de entendimento da personalidade do animal utilizada ali, percebe-se, logo de cara, que Frederico é espevitado.

Logo, pode-se concluir tranquilamente que a estratégia funciona bem. Mas o que parecia o paraíso, em dez minutos, revela-se bem caótico e então, fica evidente que nada funcionaria ali sem a ajuda dos voluntários; pois a bagunça de dezenas de cães convivendo e comendo juntos, por dez horas, é inevitável e o local precisa ser higienizado constantemente.

Seguiam-se as conversas entre voluntários – que, em maioria, pareciam tratar-se de moradores de rua – e cães: “Frederico, não afronta o Hermano”. A convivência era harmoniosa, debaixo das centenas de origamis de passarinhos coloridos pendurados no teto da galeria, que também acomodava várias pinturas em tela, fixadas nas paredes; uma delas lembrava um grafite, com um buldogue francês fumando um cigarro, estampado em fundo cinza, posicionado em cima de uma pequena plataforma trazendo os dizeres ‘Fidel pra presidente’ e assinada por Siss.

Todas as pinturas ali se tratavam de cães e fazem parte da exposição que a instituição batizou de ‘A Arte em Prol dos Pets’, um evento que acontece anualmente, no qual “a artista plástica e jornalista de arte Ana Bittar reuniu mais de vinte e três artistas plásticos”, “com o principal objetivo de discutir temáticas relacionadas ao convívio e relacionamento do homem com os cães”, diz o site do centro cultural. Embora um buldogue fumando cigarro e pedindo a presidência de Fidel Castro possa parecer bem fascinante, a parte mais encantadora do projeto é que a verba arrecadada com a venda das telas é destinada à ONG que realiza a feira dominical de adoção no centro cultural.

Em meio à conversas com os animais, ordens em tentativa de organizar o ambiente, troca de informações com os voluntários, manutenção do controle quanto às escapadas dos cães (um deles agora adentrava o elevador da galeria) e desespero para não deixar um outro cão chegar perto da sujeira de um terceiro cão que se excedeu de ração e regurgitou, a coordenadora da ação, ainda por cima, se desdobrava para conseguir (além de tudo o que já estava fazendo) explicar mais informações sobre o trabalho ali realizado.

Genirara Perdrundes era uma mulher que transmitia a paciência de um monge budista. Além disso, era completamente devota à causa, da cabeça aos pés. Ela parecia ter infinito zelo com os animais ali presentes. Sabia o nome e a idade de todos eles e explicava, minuciosamente, apesar de todas as interrupções, sobre o fato de que “os filhotes ficam separados dos adultos por que eles não têm o mesmo tipo de imunidade”, enquanto acariciava um dos maiores e provavelmente mais velhos cães dali, que, debruçado na grade, parecia pedir que o carinho não parasse nunca “você só tem tamanho, não é?”.

Serena, apaixonada, e absolutamente fiel à paixão que sente por aquilo que realiza, ela explica, com todo o conhecimento que detém sobre o assunto e com muito carinho, que, apesar da feira de adoção acontecer aos domingos na Matilha Cultural, a associação Natureza em Forma funciona há duas quadras dali, de terça à domingo, das dez horas da manhã até as oito horas da noite. No caso de um animal ser escolhido para ser levado para casa, a adoção precisa ser oficializada:

É necessário que o tutor vá até a ONG com RG, CPF e comprovante de residência, pra registro de documentação e pagamento. Nós cobramos uma taxa de sessenta reais pra adoção de animais adultos ou os de raça não definida e cento e vinte reais pros filhotes ou animais com a raça parcialmente definida; e todos os animais já vem vacinados, castrados, e vermifugados. A ONG também trabalha com o resgate de aves e roedores e a maioria dos animais que estão aqui hoje são resgatados de acumuladores, que é quase como se eles vivessem em situação de rua, o que é muito triste, nem me fale.

Apesar de Hermano, Frederico, Chico, Billy e todos os outros cães, dos filhotes do outro lado do cercado e dos gatos nas gaiolas individuais – situadas na entrada do centro cultural – terem sido resgatados da situação de rua (na qual trinta milhões de animais se encontram no Brasil), ou de tristes casos de acumuladores, eles ainda aguardam por um lar definitivo, com tutores responsáveis, assim como Luke e Leia, Anakin e Padmé um dia aguardaram. Mas, na maioria das vezes, não são todos os bichinhos com a melhor das hipóteses contadas em sua história. 

A quantidade de animais que são adotados ainda é pequena em relação aos que são comprados em lojas; aos que são brutal e irresponsavelmente abandonados na rua; e aos que nascem espalhados pelos quatro cantos do país, onde vivem com fome, literalmente virando latas, e morrem atropelados. Este é um cenário no qual o esforço das ONGs em promover a adoção é essencial, mas, sobre tudo, o ato de amor disfarçado de adoção é imprescindível.

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Carol Tolentino – Fala!MACK

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