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Kerouac: entre o ser e o ter

As clássicas viagens de Jack Kerouac publicadas na obra “On the Road”, em 1951, descrevem suas passagens pelo Estados Unidos e México. Junto com Allen Ginsberg e William Burroughs, iniciam um novo estilo literário: o da “geração beat”.

Em seu livro “On the road”, Kerouac afirma ser a viagem mais importante que o destino. Há algo transcendente nesta frase poética: está falando da vida.

Kerouac entre o ter e o ser. | Foto: Reprodução/Montagem.
Kerouac entre o ter e o ser. | Foto: Reprodução.

A estrada de Kerouac

Kerouac está a procura de algo, “ele está buscando o porquê da estrada, não a estrada em si”, diz Cunnell.

A estrada em si já existe, como num processo histórico a qual o sujeito se depara, habitua, vive, mas o porquê da estrada estar ali ou o porquê de tomarmos certa estrada deve ter algum sentido, “(…) toda aquela estrada seguindo em frente, todas as pessoas sonhando nessa imensidão”, sim, a estrada é a própria representação da vida, o destino é a morte (…) ninguém sabe o que vai acontecer a qualquer pessoa além dos desamparados andrajos da velhice”. Foi por isso que Kerouac embarcou nesta viagem “(…) e as histórias eram todas verdadeiras, histórias de vida, cada palavra”.

Jazz, bebidas, drogas, garotas e liberdade, muita liberdade, como se a objetividade do cenário político das guerras e crises envolvendo os Estados Unidos não existissem, tinha algo de maior importância: a sua própria estrada (Bukowski, em algum momento, escreve que democráticos e ditadores são do mesmo saco, a única diferença, segundo ele, é que para o primeiro têm eleições). Kerouac está à procura de sua própria trilha como se estivesse se descobrindo a cada curva, reta e episódios.

Sabemos disso, é na estrada que estão as melhores experiências: lugares, comidas, conhecidos, imagens, sons, tudo aquilo que atiça os sentidos. São essas experiências que constituem todo o ser.

O conhecimento, a subjetividade, são decorrentes dos caminhos percorridos na estrada da vida. Porém, a estrada nem sempre é sinalizada e tranquila. Existem buracos, obstáculos e acidentes que não deixam de contribuir para a vida. Kerouac sabe disso, seria “o fim da estrada?” , não, Neal deu volta com o carro e seguiram novamente a caminho de Philadelphia. Kerouac está à procura da construção de si, através de diálogos consigo próprio e reflexões nada fáceis. Sofrimento e angústia são rotineiros.

Riqueza e pobreza em “On the Road”

A velha discussão entre a riqueza da produção e a produção de riqueza é repercutida pelas estradas afora. “On the road” exemplifica a verdadeira riqueza da produção de uma viagem ou de uma vida, pautada na construção do ser. Essa é a riqueza: as experiências da vida. Porém, numa sociedade de consumidores, a mesma escrachada pela geração beat no movimento de contracultura, inverteu a riqueza da produção para a produção de riqueza. Ora, o necessário é produzir o ter.

A definição do ser pelo ter: aquele que tem o carro do ano, brilho nos pulsos, o baita tênis nos pés, a geração ostentação em todas as esferas sociais. A contracultura foi marginalizada. Não importa mais a viagem, mas sim o destino, com todas as selfs a mostra nas redes sociais. O ter para ser. 

O dever-ser de hoje foi filtrado de todas as angústias, sofrimentos e obstáculos da vida. É proibido sofrer. No lugar do sofrimento, ocupa o espaço com o ter. A criança chora dão doces a ela, um tablet para mantê-la sossegada, o iphone entra em jogo, entram também as morfinas, fármacos, ritalina, fluoxetina, anfetaminas, cocaína, heroína, tudo para evitar o sofrimento, a solidão (os mal-estares da civilização segundo Freud, na vivência da ilusão do futuro: o destino). O ser não tem tempo de enfrentar os próprios fantasmas da vida. O ser é suposição, é líquido para Bauman.

O ter não sustenta o ser, por isso, cada vez temos mais e mais consumidores, a sociedade de consumidores. Kurouac sabia disso, ele precisou enfrentar a sua estrada, ele precisava saber dos porquês, bateu de frente nos fantasmas, enfrentou os desafios da vida, “[…] de todo modo eu me fui, e foi o que Neal e Allen fizeram… […] sorrindo felizes, pegaram a estrada e partiram”.

A sociedade do ter não encontra mais sentido na vida, ora bolas, é obvio que não encontram, o ser sem sentido por não estar na estrada, mas apenas pensando na produção de riqueza, no ter. Porém, de alguma forma, quase que milagrosa, ela faz uma procura pelo elo perdido, e procura enfrentar os desafios, fazendo as experiências para a construção do ser. Na contracultura procura o sentido de ser.

Na contracultura a sociedade enfrenta os desafios, não os da estrada, mas cortando caminhos para se chegar ao destino da vida: a morte. Este caminho alternativo tem cinquenta desafios. Na placa indicativa não sinaliza a “Rota 66” ou “BR 153”, mas indica a trilha para uma “Baleia azul”. Seu percurso: uma procura de sentido na vida. Seu destino: a morte.

Sim, o caminho da baleia faz todo o sentido para quem não tem o ser, a sociedade de consumidores procura alternativas para a construção do ser. Como bons adeptos, tatuam no corpo a marca que simboliza sua existência como aventureiro e destemido, com pacto de sangue a baleia é o seu caminho.

Mas Kerouac estranha: “puta merda, o que esse cara está fazendo!”, e lhe adverte: “porra, garoto, periga furar um pneu nessa velocidade. Será que dá para ir com mais calma”. Os caminhos alternativos, talvez não sejam uma boa escolha, melhor dar meia volta com o carro e seguir novamente e pegar a estrada principal. “Grande, grande, você acaba de me salvar a vida”. “Tem lugar para mais um? Claro, sobe, tem lugar pra todo mundo”.

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Por Luciano Ferreira Rodrigues Filho

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