Com posicionamentos polêmicos acerca do novo coronavírus, presidente é denunciado ao TPI por crimes contra a humanidade
“Não é isso tudo que a grande mídia propaga pelo mundo todo”, “Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar”, “O vírus é igual a uma chuva. Ela vem e você vai se molhar, mas não vai morrer afogado”. Essas foram algumas das declarações do Presidente Jair Messias Bolsonaro (sem partido) antes do Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, atingir a marca de 5 mil mortes no Brasil.
Na semana do apurado, Bolsonaro, de maneira íngreme, manteve sua posição de displicência após ser questionado sobre a ultrapassagem do número de óbitos no país em relação à China, epicentro da doença: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Sou messias, mas não faço milagre”.
A conduta polêmica do presidente não se restringe, no entanto, a comentários. Na manhã do último dia 19, contrariando as indicações de isolamento social feitas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o chefe de governo e Estado participou de um ato em Brasília que pedia intervenção militar, fechamento do Congresso e do Supremo, impulsionando a aglomeração de pessoas na capital federal, fato amplamente repudiado por ministros do STF e políticos nas redes sociais.
A Denúncia
Diante das declarações do presidente, a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) protocolou uma representação no Tribunal Penal Internacional (TPI) contra Jair Bolsonaro, acusando-o de crime contra a humanidade.
“Por ação ou omissão, Bolsonaro coloca a vida da população em risco, cometendo crimes e merecendo a atuação do Tribunal Penal Internacional para a proteção da vida de milhares de pessoas”, reforça o documento protocolado pelos advogados Charles Kurmay (EUA) e Ricardo Franco Pinto (Espanha).
Segundo a ABJD, a conduta de Bolsonaro pode ser configurada como crime de epidemia, cujo art. 267 do Código Penal Brasileiro, que trata de crimes hediondos, diz respeito.
Os crimes cometidos afetam gravemente a saúde física e mental da população brasileira, expondo-a a um vírus letal para vários segmentos e com capacidade de proliferação assustadora, como já demonstrado em diversos países. Os locais que negligenciaram a política de quarentena são onde o impacto da pandemia tem se revelado maior, como na Itália, Espanha e Estados Unidos.[1]
Ressalta a instituição
“Se o presidente relata que o Covid-19 não é perigoso, muitos brasileiros assim o entenderão, e colocar-se-ão em riscopróprio, de seus familiares e de todas as pessoas com as quais tiverem contato”, diz o documento assinado pelos juristas. “A tragédia pode ser incomensurável”.
A curva x os posicionamentos
Na noite do último dia 29, foi ao ar no Jornal Nacional, programa exibido pela Rede Globo, uma reportagem relacionando as declarações de Bolsonaro e a progressão do coronavírus no Brasil.
No dia 17 de março, data da primeira morte por Covid-19 no país, o presidente classificou como histeria a preocupação com a doença e atacou governadores que já buscavam medidas rígidas de precaução contra a epidemia.
No dia 2 de abril, com 299 mortes já registradas, Bolsonaro tornou a dizer que o vírus não era isso que estavam pintando e ridicularizou quem temia se contaminar.
No dia 12, 26 dias após o primeiro óbito, o Brasil registrava 1223 mortes, marca que serve de base para esclarecer o potencial de propagação do Covid-19. Uma semana depois o número de casos fatais já havia dobrado.
Apesar dos números assustadores, especialistas da área da saúde afirmam que existe uma subnotificação de casos de Covid-19 no país. Dentre os principais indicadores pra essa condição, 5 se destacam:
- Não existem testes suficientes pra todos os casos suspeitos
- Cartórios registraram aumento de 1.035% nas mortes por síndrome respiratória no Brasil, em março e abril de 2020
- Internações por síndromes respiratórias aumentaram quase 10 vezes em 2020, no Brasil
- Número total de óbitos em São Paulo, em março de 2020, ficou 168% acima do registro oficial
- Número diário de enterros em cemitérios públicos de Manaus aumentou 161%, entre 9 e 25 de abril
Vale ressaltar que, nas porcentagens citadas acima, os casos confirmados de Covid representam pequenas parcelas, justamente pela impossibilidade de realizar a testagem em toda a demanda.
Em contrapartida…
Segundo o Estatuto de Roma, tratado que estabeleceu a TPI, é configurado como crime contra a humanidade “qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque: a) Homicídio; b) Extermínio; c) Escravidão; d) Deportação ou transferência forçada de uma população; e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; f) Tortura; (…) i) Desaparecimento forçado de pessoas; j) Crime de apartheid; k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.”
Inicialmente, o item k do trecho acima induz uma associação entre a postura de Bolsonaro e um infringimento da lei, entretanto, é preciso cautela ao correlacionar condutas repreensíveis e “atos desumanos de caráter semelhante” às outras práticas descritas no Estatuto.
Em suas redes sociais, meios de comunicação quase oficiais do atual governo, envolto em discussões, hashtags e tweets apagados, o presidente disponibiliza regularmente “relatórios” acerca das medidas tomadas pela sua gestão a fim de atenuar as consequências negativas da crise acarretada pelo coronavírus no Brasil.
Apesar de indecorosa, tratar a postura de Bolsonaro frente à situação atual como um crime contra a humanidade pode fragilizar as delimitações do código. Ainda que desmantelado, o governo tenta evitar um colapso na sociedade brasileira.
A negligência do chefe do Executivo com questões de saúde pública parece alimentar sua preocupação com a economia, originando um contraste desnecessário. De maneira semelhante, a polarização de opiniões é refletida nas interações do público em suas redes sociais.
De um lado, campanhas de #FechadocomBolsonaro e #JuntoscomBolsonaro explodem nos Trending Topics, impulsionadas por bots (ou robôs) e seguidores fiéis despreocupados com a crise político-institucional e sanitária à vista.
Do outro lado, uma oposição atenta aos deslizes do presidente a fim de, à primeira oportunidade, empilhar notas de repúdio e indagações vazias, deixa de lado o provérbio mais importante de Thomas Pynchon: “Se eles conseguem fazer com que você faça as perguntas erradas, eles não precisam se preocupar com as respostas”.
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Por Thiago Cândido – Fala! UFMG