Ruffato retrata o mundo tal como ele é: parado, frenético, confuso e, ao mesmo tempo, fragmentado em um dia paulista.
Em uma busca de narrar o inenarrável usando a literatura urbana e humana com diversidade, um livro todo fragmentado se constrói e expulsa o leitor pela violência subjacente e simbólica que permeia todo ele.
A forma avassaladora e imperiosa com “invasão da forma e evasão do sentido e sem entendimento cartesiano”, segundo Sergio Mota, fornece uma narrativa na qual não há sequência linear. Ao autor, mais importa o como do que o quê.
Enredo
São retratados personagens anônimos de uma classe esquecida: a classe média baixa. A qual é silenciada e interrompida pelo cotidiano da metrópole, que abarca exclusão e invisibilidade, sem a chance de contar a própria história.
Vidas que, tal qual os fragmentos de Eles Eram Muitos Cavalos, são e podem ser interrompidas. Assim, o autor anuncia em entrevistas que o livro não é um romance tradicional burguês.
Ao contrário, o romance retira o leitor de um lugar. Permitindo, logo, uma brincadeira poética.
Usando a música da banda Charlie Brown Jr, ele declara: “Vou te levar daqui” com toda a narrativa criativa, inventiva e contundente.
É um romance, como apontado em aula, sem narrador, mas com pontos de vista. E, se alguém ainda assim narra, não é quem escreve, mas quem vive.
Essa é uma grande graça da obra que interpela a vida da classe média baixa, maioria da população, e a escancara não como alguém que conta e assume discursos, mas como alguém que mostra, relata.
Ainda que com subjetividade, não há nada de realmente inventado na história que retrata o mundo. Isto é, ainda que seja uma história inventada por alguém, “quantas vezes não é a imaginação a origem da verdade?”, de acordo com Sherlock Holmes.
Diferencial do livro
O livro explicita que existem outros personagens, além dos grandes heróis dos romances burgueses. Neste livro, eles são cavalos e andam pelas cidades deixando marcas das ferraduras nas ruas semiasfaltadas.
Assim, apresentam-se não como sujeitos, porque não têm nome, pelagem, entre outras características necessárias. Mas sim, como objetos do mundo que, mesmo alheio a eles, sem tê-los, não funcionaria, não realizaria a translação com a mesma elegância.
Eles Eram Muitos Cavalos é um conjunto de fragmentos coesos que formam um mosaico com certa intertextualidade de registros muito diferentes: desde uma estante descrita por todos os itens nela contidos a uma conversa telefônica inusitada de uma mulher traída.
O título da obra é inspirado no poema Dos cavalos da Inconfidência, de Cecília Meireles. Segundo o autor, em entrevista concedida ao Jornal da PUC (9/5/2019), o trecho do poema resume a mensagem presente em todo o romance.
O nome do livro é uma síntese dele inteiro. A questão dos personagens anônimos, todos em busca de algo, é uma boa descrição do que está se passando dentro dele.
Observações necessárias
O que importa é quem são as pessoas por detrás das suas histórias, quais são as pessoas que estão vivendo aquilo. A literatura de Ruffato se esforça em busca do intimismo, da individualidade de uma classe que é vista como homogênea, sem sonhos e sem ambições.
Na mesma entrevista, o escritor confessa que a ideia do Eles Eram Muitos Cavalos é de alguém que caminha pela cidade e, portanto, não ouve histórias inteiras. Logo, escuta pedaços de histórias, fragmentos.
É uma viagem de ônibus onde você vê um cara no telefone, está curioso para saber a história e ele vai embora sem você saber o desfecho. O que importa é que eu traga o leitor para dentro da narrativa e que ele vire coautor da história.
Ruffato, autor de Eles Eram Muitos Cavalos
O narrador, não autoritário e todo em fragmentos se apresenta como a figura do zappeur, o qual vê recortes rápidos e secos dos momentos da vida nas cidades e contrasta com a do flâneur – um observador atento e pronto a notar tudo ao seu redor. É a figura do voyeur em uma cidade em ruínas.
Afinal, qual é a história?
Eles Eram Muitos Cavalos não tem história propriamente dita e nem princípio, meio e fim definidos. É escrito em um papel que reage ao conteúdo, ainda que seja concretamente forma.
Por meio do uso da poética da precariedade, Ruffato aplica uma linguagem que espelha a condição humana com diferentes ritmos narrativos entre os capítulos. A fim de mostrar a diversidade social que se faz perceber até no uso da linguagem.
É uma leitura intensa, dinâmica e dramática que imerge e repulsa o leitor ao mesmo tempo, provocando um movimento. Assim como a cidade aplica na inércia dos corpos que por ela se arrastam.
São costuras de narrativas que não se encontram e não se cruzam; quase histórias que não criam uma história madura, mas que carregam emaranhados de pontos de vista.
Conclusão
A imaginação que percorre todo o livro engole qualquer possibilidade de monotonia na escrita do autor e no demasiado distúrbio do livro.
Ler Ruffato no meio do metrô lotado chega a ser uma imersão involuntária, irônica e rica. São todos os rostos presentes no livro e ainda continuo sem saber das suas pelagens e origens.
O anonimato deles é como se fosse uma daquelas molduras de parques de diversão nas quais você pode colocar sua cabeça lá e, embora a mescla possa não resultar em algo perfeito, há uma troca de posições e uma exacerbação da empatia.
A realidade descrita é, visceralmente, a de quem vive na classe pobre. A qual o autor, claramente, busca descrever ainda que perpasse os miseráveis e os mais ricos.
São histórias não contadas e Ruffato não as põe na linearidade as quais estão presas no cotidiano.
A escrita do autor enfatiza o ato de mostrar mais do que contar e defende um processo de enumeração e repetição que, no seu amontoamento, expõe a desgraçada urbana pelo processo acumulativo da leitura, sendo possível notar qual marca social está sendo falada ali.
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Por Gustavo Magalhães – Fala! PUC RIO