Tarde fria e eu, então, me sinto um daqueles velhos jornalistas de antigamente que sentiam frio na barriga ao observar a chance de uma grande matéria. Uma história tão surpreendente que fizesse com que aquela moça que está sozinha naquela casa cinzenta do bairro – desacreditada dos tempos jornalísticos atuais – sentisse o que eu senti quando sai da sala regada ao gelo do ar condicionado de um cinema cuja entrada eu paguei meia. E depois, telefonasse para três ou quatro amigas para contar sobre a matéria; e todos para quem contasse, se surpreendessem também. E que ela aos poucos se espalhasse para o mundo e tomasse todas as manchetes e os diálogos de padaria ou com o cobrador do ônibus. Que ela atingisse um brasileiro em Melbourne, um chinês em Bangladesh e um russo na Guatemala. E que um sertanejo, tão mais preocupado com a falta de chuvas, se alegrasse ao ler a minha matéria ou escutá-la pela boca dos outros.
Aquele entusiasmo da turma de Boston me trouxe nostalgia e me peguei a imaginar pelo caminho, com riso tímido, as inúmeras matérias que poderiam me render ‘‘um dia de Spotlight’’. Pautar, pesquisar, conversar, bater de porta em porta e ser ignorada um milhão de vezes até que alguém de bom humor me receba com poucas palavras. Diálogo leve, risos cada vez mais fáceis. Vou embora, adquiro confiança, horas a fio nos confins da biblioteca pública. Descobertas. ‘’Eu tenho uma boa matéria’’.
Trabalho, trabalho, trabalho. Tarde da noite na redação, a esse ponto a lavadora de louças já faz todo o trabalho sozinha e minhas principais refeições resumem-se a macarrões instantâneos. Edição. Publicação. E não se fala outra coisa a não ser da matéria daquela jornalista lá, sabe? Não é lá muito conhecida. E agora? Ódio e palmas, daqueles que provoquei e daqueles que através de mim se sentiram esclarecidos. Afinal, é por isso e somente para esclarecer o que não quer ser noticiado que me tornei a jornalista que, até agora, ninguém conhece.
Uma buzina me acorda de meus devaneios e me faz perceber que por pouco não atravesso a faixa no sinal vermelho. Trânsito, correria, quase um atropelamento e sinais recentes de uma rinite alérgica me fazem lembrar do ar gelado do ar condicionado do cinema que deixei há pouco mais de 10 minutos.
Já que os pensamentos se esvaíram, atrevo-me a observar a conversa ao lado, na qual duas senhoras conversavam sobre o aumento do pão francês naquela padaria da qual não consigo lembrar o nome.
Atravesso. Entro pela porta e subo as mesmas escadas que subo há alguns anos e que já estão começando a me dar dor nos joelhos. Rapidamente, a imagem da enorme redação do Boston Globe que perambula pela minha mente se esvai e reconheço as pouquíssimas mesas que fazem companhia a minha. As outras? Todas vítimas dessa tal crise causada pela Era Digital. Frustrações, com o passar dos dias, tornam-se comuns ao perceber que meus leitores, muitas vezes, mal leem os primeiros parágrafos. Esse jornalismo desenfreado ‘’copia e cola’’ me causa náuseas ao mesmo tempo em que Spotlight é quase um sofro de esperança num meio marcado por tanta instantaneidade.
A minha vida anda instantânea demais para que eu tenha tempo de ter a minha Hora da Estrela. Já imaginou Macabéa jornalista? Eu também não. Mas ainda queria ter a chance de fazer o povo dela se deslumbrar com a minha fantástica história. E quando todos me perguntassem — “mas de onde é que você tirou essa história?” — eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: “Ontem ouvi um sujeito contar uma história…”
E eu esconderia completamente a humilde verdade: Que procurei – em meio as conversas – toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está sozinha naquela casa cinzenta do bairro.
Letícia de Oliveira Santini – Fala!Cásper
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